Se tem uma palavra que eu daria pra ilustrar minhas impressões da Cidade do Cabo é diversidade. Com toda a sua complexidade, é muito fácil ficar na primeira camada, onde cada café e restaurante e praia e montanha encanta. Mas quando você cava um pouco mais, encontra gente do Malawi, Tanzânia, Quênia, Congo, Camarões, Zimbábue. Diversidade também no jeito como se vestem e falam – além das 11 línguas oficiais, cada um tem sua ancestralidade, sua tribo.
E a comida? Tem de TUDO aqui, junto e misturado e separado. Um restaurante etíope com cozinheiros tanzanianos. Uma chef do Congo tentando abrir seu restaurante Cape Malay – cultura que por si só funde a gastronomia dos malaios com a dos van der kaap – palavras do Afrikaans, dialeto fruto da dominação holandesa, que deram sobrenome àqueles que nasciam na Cidade do Cabo.
Ao mesmo tempo, aqueles que colonizaram o país deixaram muito mais que vocabulário e comida. Assim como no Brasil, senti que a identidade sul-africana luta pra recolher seus pedacinhos. Some a isso o fato de que a tensão entre brancos e negros e as estruturas do apartheid ainda existem e estão em evidência na Cidade do Cabo: Mandela mudou tudo, mas ainda ficou muito a ser feito. Famílias inteiras ainda não conseguiram recuperar as terras das quais foram removidas pra dar lugar aos brancos – o District Six é a grande estrela dessa treta, mas as townships (a.k.a favelas) e bairros como Sea Point (a.k.a Jardins-Leblon) mostram bem a separação espacial.
Sem contar o acesso dos negros à educação, à água e eletricidade, a trabalho… E com tanto a ser feito, a África do Sul foi parar na vitrine internacional. Abriu as portas cedo demais, atraindo gente de outros países africanos sem ter condições pra isso. Entra em cena a xenofobia contra os seus – parece que a nação arco-íris não aceita tantas cores assim…
No meio disso tudo, o feminino luta pra sobreviver aos abusos sexuais dentro de casa, naturalizados principalmente nas townships. Se revolta quando sai uma notícia sobre uma adolescente enganada, estuprada e morta por um agente dos correios – durante três dias, mulheres acamparam em frente ao parlamento exigindo punição severa pelo feminicídio. No dia a dia, a coisa esfria – fica a preocupação de uma mãe que precisa saber onde a filha está a cada momento, ao ponto de monitorar a corrida de uber.
O grito vem de outras formas também: o continente enxerga as mulheres Sul africanas como umas das mais empoderadas. Elas decidem quando querem casar e com quem, se querem ter filhos ou não, se querem se parecer com a Nicki Minaj ou seguir as tradições. Se um dia vão ter cabelo trançado ou loiro e liso. De todas as mulheres que ouvi aqui – e aí, incluo uma congolesa, uma zimbabuense, uma zambiana, duas malawianas, uma sul-africana -, rolou uma frase em comum: depende da inteligência feminina observar que parte das tradições ou dos tempos modernos combina com sua própria verdade e, então, ser agregada e somada.
Um pouco da história da África do Sul
Cape Town é a capital legislativa (o país tem três, uma pra cada poder – Pretoria é a executiva e Bloemfontein é a Judiciária) e é também a principal cidade pra turismo. Mas ei, vale muito a pena estudar um pouco da história do lugar antes para entender a sua dinâmica: pra começar, o país foi colonizado por holandeses e britânicos que usaram um sistema de escravatura e de segregação racial.
O que leva ao segundo ponto. Por 46 anos, a África do Sul foi governada pelo Partido Nacional, que instituiu o Apartheid, uma política que oficializou a restrição (cof cof, anulação) de direitos dos negros: O casamento e o sexo interracial foram proibidos. Negros não podiam votar, usar nem ocupar os mesmos espaços que os brancos. A “raça” ao qual cada um pertencia passou a constar no documento de identidade. A classificação, dividida em “Branco”, “Negro”, “Coloured” e “Indiano”, era baseada na cor da pele, ancestralidade, status socioeconômico e até o estilo de vida. Dependendo do grupo, a identidade servia como um passe de acesso ou de restrição aos lugares, desde bairros a lojas e banheiros. Muitas famílias foram despejadas de seus bairros para darem lugar aos brancos e realocadas para as periferias da cidade, que hoje são chamadas de Townships.
O curioso é que a África do Sul ainda era uma colônia inglesa quando o Apartheid foi instaurado (1948), pois a independência só veio em 1961. A democracia, por sua vez, passou a ser instaurada a partir de 1994, quando os negros puderam votar de forma inédita na história do país (!!!) – sendo que apenas 8% da população era branca. Não à toa, a geração que nasceu em 94 se chama Born Free, e não Baby Boomers..
É nesse cenário que entra Mandela, ativista principal no fim do Apartheid e primeiro presidente eleito. Mas a dívida estava bem longe de ser paga… Hoje, o país tem alta disparidade social, taxa de desemprego (29% em 2019) e uma profunda cultura de racismo, o que leva à questão da Xenofobia, nosso próximo item.
A xenofobia na atual África do Sul
A África do Sul foi colocada na vitrine internacional como representante de uma nova imagem do continente – não à toa, foi sede da Copa do Mundo em 2010. Juntando ao fato de ter se tornado um baita polo turístico, recebeu ondas de imigração de outros países africanos – pessoas que fugiam de guerras civis e situações de miséria chegavam em busca de melhores condições de vida.
O problema é que esse investimento na imagem sul-africana aconteceu cedo demais: a maioria negra ainda se encontra em townships, com menor acesso à educação e políticas públicas em relação aos brancos e, por isso, com adesão restrita a empregos que não sejam subalternos. A escalada social e econômica não rolou como se esperava – e se os próprios sul-africanos não conseguiram se estabilizar ainda, que dirá os imigrantes. O governo passou a ter um discurso que incita o ódio a outros africanos, culpando-os pela alta taxa de desemprego, o que levou aos ataques xenófobos por parte de uma população que já tem raizes no racismo.
Em 2019 o país teve um pico da crise iniciada em 2008 – em setembro, aconteceram vários atentados e assassinatos de imigrantes em alguns pontos da África do Sul, sendo Joanesburgo o pior cenário. Quando estive em Cape Town, uma série de eventos me levou até o centro de refugiados montado na igreja no Green Market Square como resultado da onda xenófoba. Conversei com o líder do movimento, JP, e ele me guiou lá dentro. O que vi partiu meu coração: cerca de 800 mulheres e crianças com as vidas em stand by. No momento da minha visita, em dezembro/2019, estavam completando quase dois meses de ocupação. Quatro grávidas já haviam dado à luz ali e a situação não se resolvia por um embate de diversas frentes.
A igreja havia se oferecido para recebê-los depois de terem sido expulsos por forças policiais do acampamento montado em frente ao escritório das Nações Unidas no final de outubro. No entanto, a instituição não mais os queria ali por algumas atitudes de desacato, como fogueiras e más condições sanitárias dentro da igreja, enquanto a UN e a liderança do movimento não chegavam a um acordo sobre as realocações. Tive de deixar a cidade na semana seguinte e não consegui encontrar outras fontes (da UN e da igreja), então não consegui apurar melhor nem acompanhar os acontecimentos seguintes. Mas em março deste ano, foram removidos por ordem judicial e a situação continuava sem solução.
No balanço geral, a África do Sul é bela em sua diversidade, mas carrega heranças complexas e não cicatrizadas assim como toda nação que já foi colonizada – e a Cidade do Cabo é a maior prova disso.
[…] histórias. Fiquei amiga da Fanny, um força da natureza malawiana que por sua vez me levou até o centro de refugiados montado em Green Market Square como resultado da onda xenófoba no país. Ela foi entregar folhetos que havia impresso pra ajudar […]
[…] Impressões da Cidade do Cabo […]