Virei celebridade em uma township party

Desci do carro. Fui escoltada pelo asfalto empoeirado até o chão de terra batida da calçada, desviando dos carros que poderiam ser dos anos 2000. Dentre as construções de tijolo cinza cru e as barracas improvisadas com placas de metal, grades de arame e faixadas feitas à mão, um lugar se destacava pelo som do burburinho e da música – sem mencionar seus guarda-sóis vermelhos quadrados e estampados, respiros do sol junto com a tenda branca montada em frente ao camarote do DJ. Foi para trás dessas grades que fui levada mas, mesmo sentada na mesa de plástico no canto, sentia todos os olhos em mim, disfarçados ou não. A batida do eletrônico misturado com teclas de piano, os baldes de cidra e gelo e as risadas dos meus amigos quebravam a tensão do novo que eu vivia: estava mergulhada não só em algum lugar de Midrand, uma das tão temidas Township de Johannesburgo, como em uma de suas festas.

Como cheguei lá? Por causa dos DJs que tocaram no festival de ano novo do Tofo e com quem tinha feito amizade. Um deles, o Sucre Soul, mora no Soweto – e chamou os outros dois, Yalle Deep e King Lui, pra tocar numa sunset party que ia fazer por lá. Estávamos todos na casa do Ov, inclusive outra menina local que fizemos amizade na festa do dia anterior, Mbali. Pronto, caravana armada.

E foi uma das experiências mais loucas porque, no começo, me sentia um animal raro enjaulado. Eu e Yalle, um alemão, éramos os únicos brancos no rolê. Eu tinha conectado muito com a Mbali, que ativou o modo superprotetora – ela vigiava minha bolsa em cima da mesa, guardava meu celular no seu top e mandava pastar alguns caras que vinham tentar conversar comigo. Mas comecei a me coçar ali no camarote. Queria conversar com as pessoas, sentar no meio das rodas de banquinhos de plástico e tomar da mesma cerveja quente. Lui tava comigo – e foi assim que saímos do nosso quadrado.

A festa teve direito a Mestre de Cerimônia
Parte da galera reunida do Tofo – eu, Ov (abaixo) e King Lui (direita) – e agregadas

Fui direto até uma roda de mulheres que não parava de olhar e sorrir pra mim de longe. Sentei com elas, bebemos, conversamos. Selfies. Mbali saca meu celular do top, começa a fotografar e não para mais. Bateu aquela velha culpa – “não era eu que deveria estar preocupada em registrar tudo? Que raio de jornalista é você, amada?”

Mas quando vi a artista que Mbali era, mandei o ego calar a boca. A mana fazia mágica com a câmera do celular – e uma série de pensamentos me atropelaram. Primeiro, perceber o quanto ela via aquele iphone como uma oportunidade pra fazer o que amava – quem era eu pra tirar isso dela? Segundo, como ela tinha um acesso que eu nunca teria pra fotografar os locais – por compartilhar a mesma língua, a mesma cultura, a mesma cor de pele, já chegava no molejo, arrancava sorrisos, furava barreiras e conseguia os retratos mais incríveis. E aí me veio: eu não vou conseguir fazer o Womanifests acontecer sozinha – e nem é pra ser assim. Não é sobre mim. É sobre o nós. As mulheres com quem cruzo meu caminho, com quem fundo minha história nem que seja por um momento. Totalmente entregue à fotografia, Mbali tinha virado uma extensão do meu corpo ali.

Pronto, passou o momento da reflexão: Precisava ir ao banheiro. Pedi para Lui ir comigo. Como se fosse um portal, cruzei a nuvem que saía da grelha chiante de churrasquinho de rua e desci uma rampa claustrofóbica – mas onde ela me levou me deixou ainda mais sem ar. Cerca de 60 pares de olhos me fitavam. As cabeças se moviam conforme eu cruzava o salão, o silêncio era quebrado pelo jogo de futebol do telão e pelos comentários feitos em uma língua que não entendia, mas que sabia serem uma provocação a mim. Me senti invadida, exposta, vulnerável. Argh.

Só respirei de novo quando entrei no banheiro – um espaço de 4m² ladrilhado com azulejos brancos encardidos e dois buracos lado a lado no chão. Três garotas estavam lá dentro e assim que abri a porta de madeira, a reação foi instantânea: a que não estava ocupada fazendo necessidades pediu pra tirar uma selfie comigo e as duas que estavam treinando agachamento nos buracos já disseram que seriam as próximas. Enquanto posava pro celular, entraram mais três meninas – e pronto, a fila das selfies tava formada. Pro meu desespero, cada vez que eu achava que ia conseguir fazer xixi, entrava mais gente e a fila voltava. Chegou ao ponto em que implorei pra me darem um minuto e, enquanto eu estava lá no agachamento, uma das meninas veio fazer uma selfie – tirei, mas sem parar de fazer xixi. Ah, sabe, prioridades! Pior que depois fiquei imaginando a legenda se fosse pro insta: “eu e a mulungo mijando”. Vinte minutos depois, abro a porta e tá Lui lá, sentado. “Achei que você tinha morrido”, disse. Ao que respondi: “Nada, vivi e muito meus 15 minutos de fama”.

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Quem é essa celebridade?
DJ Yalle foi a outra estrela da noite – também pediam pra tirar selfies com ele o tempo todo

Mal sabia que isso duraria a noite inteira. Era só eu cruzar olhar ou dar um sorriso e a pessoa vinha tirar a selfie com a Mulungo. A certa altura, uma mulher pediu pra tirar foto comigo e o amigo que estava junto já se posicionou com o celular na mão. Depois de mostrar o resultado, voltou para a tela inicial do celular e adivinha qual era seu plano de fundo? Uma selfie minha e dele que, aparentemente, tínhamos tirado mais cedo. Gente?

A tarde virou noite e, enquanto os DJs do Tofo tocavam seus sets de amapiano, uma batida eletrônica misturada com piano que é marca registrada da África do Sul, os personagens não paravam de aparecer. Teve a moça que me ensinou a dançar com as tetas (“this is how we do it in South Africa”) e a outra que topou ir até o chão comigo. Teve também o Jeremiah, um 4×4 que se prostrava ao meu lado, pegava minha mão e dizia pros meus amigos “She’s my sister, I’m gonna protect her, nobody is going to harm her”, batendo continência logo em seguida.

E não é que ninguém fez nada mesmo? Dancei, brilhei, tirei onda de famosa, conheci gente linda e ainda voltei com o celular cheio de foto com o olhar sensível da Mbali. Midrand, tu tens meu amor.

Quem tem medo das Townships?

Pra começar, vou explicar o que é uma e já dou o spoiler – você já conhece, mas com outro nome.

Na África do Sul, esses bairros começaram a surgir a partir da primeira metade do século XX como resultado da migração de pessoas atraídas pela possibilidade de um emprego nos centros urbanos – os assentamentos construídos nas periferias se expandiram mais ainda depois da Segunda Guerra Mundial. O crescimento desordenado resultou em problemas tipicamente periféricos como falta de saneamento básico (esgotos ao ar livre, nenhum sistema de recolhimento de lixo) de água e eletricidade. E se antes já eram reservados pra parcela mais pobre da população, com o Apartheid ficou mais nichado ainda. Isso porque a política aplicava a segregação geograficamente e muitas famílias das consideradas minorias (negros, indianos e asiáticos) foram despejadas de bairros centrais e levadas para as Townships.

Já deu pra sacar, né? As Townships são primas das nossas favelas e, até hoje, concentram os menos privilegiados. As condições, é claro, levam a altas taxas de violência – assim como todo lugar onde há grande disparidade social – e, por isso mesmo, todo mundo morre de medo não só de pisar perto, como das pessoas que vivem lá. Isso reflete nos comentários que tanto ouvi sobre Johannesburgo. É perigoso? É. Assim como São Paulo e Rio de Janeiro, além de milhares de outras cidades espalhadas pelo mundo. Nem por isso as pessoas devem deixar de visitar, conhecer os locais e sua realidade.

Sucre Soul nos levou pra conhecer sua casa, no quarteirão ao lado do bar – essa é sua família

Basta tomar os cuidados de sempre – veja abaixo algumas dicas de segurança universais:

  • evitar andar sozinhx na rua à noite
  • evitar andar sozinhx em lugares muito isolados (qualquer horário do dia)
  • ficar sempre de olho nos seus pertences
  • prestar atenção naqueles que te cercam
  • andar com moneybelt por dentro da calça
  • aparentar que sabe onde está indo (não mostrar que está perdidx)
  • se precisar pedir ajuda ou direcionamento, pergunte a uma mulher (principalmente se você for mulher) ou em um estabelecimento
  • não andar com celular ou câmera na mão – usar só quando necessário mesmo
  • no caso específico das townships: vá com um local! Se for convidado a ir, melhor ainda

Resumo da ópera: se puder ir a Joburg, vá. E se alguém disser que não vale a pena ou que é perigoso, além de dar uma olhada nesse post, veja as fotos tiradas por Mbali – são essas as pessoas assustadoras que moram em Midrand.

Marina Pedroso

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