DIA #5
Barafu Camp (4,645 m) >>> Uhuru Peak (5.875m)
Na verdade, começamos mesmo às 11h – para seguir o script de todos os nossos outros dias, saímos atrasados. Cruzamos todo o acampamento, que parecia não acabar nunca, e íamos encontrando trilheiros que tinham partido ao ataque na noite anterior e que chegavam de volta àquela hora. Ninguém dizia uma palavra e dava pra ver a exaustão nos movimentos pesados e nos rostos queimados de frio e cobertos por óculos de sol, gorros e golas de jaquetas. Muitos desciam quase desfalecidos e carregados pelos guias, que seguravam cada um em um braço e arrastavam o corpo trilha abaixo. Olhava a cena e só pensava: “credo!”
Logo nesse comecinho, senti meu coração acelerar demais e a pressão cair. Tontura, dor de cabeça. Ah, não… mal de altitude, agora? Depois de tudo que passei? Não! Continuei subindo. E subindo. Subindo. Subindo…
O grau de inclinação e a infinitude do trajeto eram inacreditáveis. Eu olhava pro pico e ele parecia extremamente longe, até em termos de paisagem – tudo o que eu via se assemelhava a um deserto arenoso bege, enquanto a montanha de rochas vulcânicas negras era coberta de neve. Ao nosso lado direito, o pico Mawenzi ia ficando cada vez mais baixo que nós e o sol castigava um pouco, mas o vento gelado contrabalançeava.
Tentava enganar o cansaço do corpo subindo em ziguezague – um truque que aprendi com minha amiga Patrícia. Traçando o caminho dessa forma, o ângulo de inclinação se torna menor. Quase como que atendendo a um pedido, terminada a ladeira arenosa infinita a montanha apresentou uma trilha de pedras que fazia cortes secos pra esquerda e pra direita. Foi nesse momento que Glauco começou a parar demais. Soltou algumas vezes que estava pensando em voltar e eu tentava incentivá-lo a não desistir. Nisso, um grupo de seis a oito trilheiros que subia roboticamente em uma fileira nos ultrapassou. Me deu alívio ver que não éramos os únicos subindo àquela hora, mas fiquei em choque – nenhum demonstrava o mínimo sinal de cansaço.
Já tinha ouvido falar que muitos vivem o Kilimanjaro como uma experiência transcendental – qualquer coisa espiritual acontece no caminho até o cume. Uma coisa é certa: é um teste mental dos fortes. Seguir um passo atrás do outro apesar do cansaço do corpo e da sensação de que ainda faltava um absurdo para chegar era excruciante. Eu alternava minha rádio na cabeça entre mantras e estipulava pequenas metas. “Vai, só até aquela pedra esquisita ali”, “tá, agora vai até aquela outra”. Comecei a usar o próprio grupo de trilheiros experts como estímulo – queria chegar onde eles estavam descansando e ultrapassar. De fato, passávamos alguns metros até precisarmos parar para descansar e eles cruzarem na nossa frente de novo… Até os perdermos de vista.
Mas quando vi o primeiro pedaço de gelo no caminho, renovei um pouco da energia. Não estávamos mais no deserto! As mil mulheres estão comigo. Ai, meus pés…
Chegou um momento em que a força não vinha mais dos músculos. Não tinha como. E aquilo me fazia querer chorar – a cada curva que eu conquistava, me surpreendia com minha força interna. Não fazia ideia que tinha tudo aquilo dentro de mim.
E então, quando chegamos numa placa, desabei em frente e dei uma choradinha com a testa no chão. Glauco ajoelhou e beijou o chão também. Foi uma alegria sem tamanho – até entender que aquele lugar era o Stellar Point, um marco na trilha, não o Uhuru Peak. Alguns minutos depois, aliás, enquanto ainda sentíamos o gosto primeira conquista, o grupo dos trilheiros experts marchou por nós de novo, mas dessa vez voltando do pico e começando a descer sentido acampamento. Razzak disse que faltava pouco e seguimos caminhando pela neve, nos equilibrando na aresta da montanha. “Já estamos andando sobre ela”, pensava. “Mas cadê a placa? Se está perto, porque não a vejo?”
Confesso que descobrir que o Stellar Point não era o Uhuru Peak e que ainda teríamos que caminhar pelo menos meia hora para chegar lá quebrou minhas pernas. Ao achar que tinha chegado no ponto final, foi como se eu tivesse liberado um bloqueio mental construído para não tomar consciência de toda a exaustão do corpo.
Razzak podia muito bem ser mineiro. O “logo ali” nunca chegava. A trilha estreita abria passagem na neve e, cada vez que eu via uma subida, levava um golpe mental: “você não vai conseguir, seu corpo não aguenta mais…”
Sentia como se o corpo estivesse se desfazendo pelo caminho. A cada minuto apoiava o peso todo do corpo nos bastões, arfava e torcia o rosto de dor. Olhava pra trás e não via Glauco… será que tinha desistido? Não sabia, mas eu não podia parar. Fui cantando baixinho pra mim mesma que eu já tinha conseguido. Que eu tinha a força de mil mulheres. E logo depois de passar por uma curva em um dos vários morrinhos que compõem a linha da montanha, vi a paisagem mais linda de todas: à esquerda, um homem andava de volta na linha da montanha com um guia. Cerca de 1km atrás, a placa e o sol se pondo atrás dela. Eu tinha chegado.
Arrastei os pés até abraçar um dos postes de madeira e comecei a chorar compulsivamente. Agradecia, ria, gritava, chorava ainda mais. Então, lá longe, vi Glauco na trilha. Sentei embaixo da placa, enfiei as mãos no rosto e segui chorando (gente, me deixa). Enxerguei o que minha mente não tinha permitido antes: estávamos acima das nuvens de tal forma que poderia muito bem ser a vista de uma janela de avião. De um lado, uma imensa chapada enrugada de gelo e mais um tapete de nuvens atrás. Do outro, a cratera coberta de neve do que um dia foi um vulcão em erupção.
Quando Glauco chegou, sentou no meu colo, me abraçou e disse que eu era uma das mulheres mais fortes que ele havia conhecido. “Eu sei”, respondi aos soluços.
“Ei, sabe aquele grupo expert de trilha? Eles desistiram. O homem que vimos voltando do pico foi o único dali que resolveu ir em frente e que conseguiu”, Razzak disse.
E agora eu volto à minha pergunta: O que faz com que alguém alcance seu cume? E o tal dos leopardos, existem mesmo?
Afinal, a montanha me respondeu. Não é sobre força física ou mental: O Kilimanjaro concede a graça da chegada aos fortes de coração. E são estes que também encontram os leopardos – segundo a lenda dos xamãs, esse animal de poder dá proteção espiritual para que a pessoa não se perca nem desista do caminho. Alguém duvida que eu estive cercada deles o tempo todo?
*
Levamos um total de 7 horas pra alcançar o Uhuru Peak. Ficamos 15 minutos e tivemos de ir. Primeiro por causa do tempo – chegamos ao cume às 18h, completando 7h de subida, e ainda precisaríamos descer… no escuro. Segundo, pelo frio: não conseguia mais sentir os dedos da mão direita, que eu tinha me atrevido a tirar da luva pra poder fotografar. Meus lábios e minha bochecha direita também poderiam muito bem estar congelando – o vento era impiedoso e dava a sensação térmica de -20ºC.
Então, depois de pularmos na neve e fazermos festa, juntamos as coisas e iniciamos a descida.
*
A luz ia caindo e descemos correndo, literalmente. Como grande parte da trilha era feita de uma areia fofa, fomos “surfando” – escorregando os pés em zigue-zague pra deslizar com mais velocidade. Aos poucos, foi despontando por detrás do Mawenzi o que poderia ser mais um presente dado aos fortes: uma lua cheia totalmente vermelha e hipnotizante.
Dessa vez, quem precisava parar toda hora era eu. Sentia meu corpo desligando de exaustão. A pressão dava uma caída vez ou outra – não havíamos comido nada depois do café da manhã – e os joelhos doíam em agonia. Sabia que teria que arcar com as consequências por surfar daquele jeito, mas queria desesperadamente fugir do frio e do breu. Fora que nossa água tinha acabado e os guias não tinham nem rádio com eles…
Então aconteceu. Os guias grudaram nos meus braços começaram a me arrastar. Quem diria que eu me tornaria uma daquelas pessoas desfalecidas? Tentei brincar com a situação e gritei pro Glauco, que estava na frente: “finalmente estou sendo tratada como a rainha que sou. Saia da frente, súdito!”
Foram mais três horas até o acampamento e era impossível acreditar que tínhamos subido tudo aquilo. Se não tivesse sido pela intuição (e um pouco de bom senso, vai) do Glauco, se tivéssemos ido às 23h com apenas 2h de descanso, tenho certeza que não teríamos conseguido – o que ressaltou ainda mais a irresponsabilidade da agência.
No fim, dormiríamos novamente no Barafu Camp dado o horário que chegamos, quase 22h. No dia seguinte, o último de nossa saga, porém, teríamos que andar o caminho todo até o portão de saída, totalizando 17km. Tudo sem comida ou água.
Quando me deitei na barraca, cada átomo do meu ser latejava. De verdade, não havia um milímetro do meu corpo que não estivesse paralisado em dor. Eu chorava num misto de exaustão e de gratidão por aquele conjunto de ossos e músculos terem topado a loucura do coração. O jantar chegou – sopa, arroz, salada de repolho. Não consegui comer, só queria dormir. Então fechei os olhos e me deixei levar pelo barulho do chicote do vento.
DIA #6
Barafu Camp (4,645 m) >>> Meweka Gate (1.689 m)
Quando os abri de novo, o sol iluminava tudo. Parecia que tinha levado uma surra depois de um caminhão passar por cima de mim. Não queria acordar porque significaria que teríamos que começar a andar de novo.
Depois de muita manha, cedi, mas não às botas. Tinha me proibido de colocar os pés nelas de novo até segunda ordem. Eu já tinha feito tanta maluquice que mais uma não faria diferença… então não tive dúvidas, me enfiei nos crocs do Glauco pra encarar os 17km.
Foi impressionante cruzar todas as zonas da montanha em um dia: da infinitude do Deserto Alpino para os arbustos secos impressionistas da Moorland e, finalmente, abrindo os poros para a umidade da floresta. O oxigênio voltava a cada passo dado em direção à saída.
E devo confessar que dei um ctrl + shit na reta final. No fim, todo o furdúncio do golpe valeu de algo: quando li sobre todas as taxas que uma diária a mais no parque incluiria, descobri uma que contempla resgate. Meus joelhos estavam numa lástima e era justamente na descida que eles mais me faziam mancar. Não conseguia andar rápido e tínhamos prazo pra chegar ao portão pois, se passasse das 18h, ficaríamos trancados do lado de dentro e teríamos que pagar mais uma diária. Juntei lé com cré e lancei: “Razzak, como faz pra acionar o resgate?”
Houve uma época em que o parque disponibilizava helicópteros, mas há anos não funcionam. O que poderíamos fazer era chamar um carro para nos buscar dali a 10km. Pouparíamos só 3km, mas já valia. Cheguei a me questionar – você já fez a parte mais difícil e vai trapacear no final? Ao que respondi: “cala a boca, ego, e deixa esse orgulho de lado. Prefiro ter meus joelhos vivos para continuar a viagem. Pra mim deu!”
Chegamos no ponto de encontro, onde a trilha da floresta desembocava em uma estrada de terra. Acabamos pegando carona em um comboio militar que vinha buscar alguns soldados em treinamento. Não sei quanto a eles… mas a minha missão estava cumprida.
SERVIÇO
Algumas informações técnicas e úteis:
- Valor em fevereiro 2020 – US$ 1500 (6 dias de Machame Route + 3 dias de safári pelo Serengeti e Ngorogoro Crater). Aqui, uma observação: não recomendo fazer a rota em 6 dias. Há expedições que fazem, mas naquela condição de trilhar 22 horas pra 3 de descanso. O mais sensato é que seja feita em 7 dias para ter uma noite a mais de descanso.
- A empresa que contratamos foi a Meru Treks e NÃO RECOMENDO. Foi uma sucessão de erros que poderia não só ter prejudicado nossas chances de chegar ao cume como também nos colocou em risco. A lição que fica é: pesquise muito, muito bem antes de fechar com uma empresa e desconfie do barato. Na época em que fui (início de fevereiro 2020, antes da pandemia atingir o país), US$1200 seria um preço razoável para sete dias de Machame Route.
- Prepare-se para não tomar banho. Não tem água e, mesmo se tivesse, o frio é tanto que você certamente não teria coragem – a menos que queira uma pneumonia de leve.
- Equipamentos essenciais: bastões, luvas, gorro, óculos que cubra a maior área possível do rosto. A agência providenciou tudo isso incluso no pacote além de roupas pra neve e é possível alugar em lojas especializadas tanto em Arusha quanto em Moshi.
- Roupas: levei duas calças e uma blusa segunda-pele, uma legging (pra fase da floresta), uma blusa fleece, uma jaqueta corta-vento. Em trechos mais frios, peguei uma corta-vento extra da agência. No dia do ataque ao cume, usei um casaco de neve que a empresa também disponibilizou. Por último, não subestime as meias nem as botas!
[…] CONTINUA: Parte 3 – a ascensão […]