Perambulando pelas ruínas do que um dia foi Ephesus, cruzei com seu olhar do alto de uma fachada. Seus cabelos labirínticos e os seios protuberantes deram a dica de quem se tratava. A intuição logo foi confirmada por um guia de espanhol truncado que passava com turistas ao meu lado – “… és Medusa…”
Lembro do embrulho que senti no estômago ao ouvir a história de Medusa.
A HISTÓRIA DE MEDUSA
Na versão mais conhecida da mitologia grega, era uma das três Górgonas, nascidas de entidades marinhas. Com cabelo de cobras e um rosto monstruoso cujos olhos petrificavam os homens que os mirassem, Medusa era temida – até que um herói recebe a missão de levar sua cabeça a um rei. Estamos falando de Perseu que, com a ajuda da deusa Atena, ataca as irmãs em seu sono, usa o reflexo do escudo divino presenteado para evitar o poder de Medusa e a decapita.
Mas a versão não tão difundida conta que, antes de se tornar um monstro, Medusa era a única mortal das irmãs – ou seja, costumava ser uma mulher comum. Na verdade, de uma beleza extraordinária… Tão bela ao ponto de atrair a atenção de Poseidon, que resolveu tomá-la para si. O estupro aconteceu no templo de Atena, despertando a fúria da deusa. Mas, em vez de se revoltar com Poseidon, puniu Medusa, tornando-a em um monstro. A vingança é bem simbólica: o cabelo é por si só uma grande representação da beleza e vaidade feminina e era um dos maiores dotes de Medusa. Não à toa, Atena o transforma em um ninho de serpentes. E não bastou criar uma imagem grotesca para repelir homens. A deusa garantiu que mais nenhuma outra atenção masculina chegasse àquela mulher – quem a mirasse nos olhos viraria pedra imediatamente.
Então além do estupro, a mulher ainda é punida. Mais que isso, a vingança se resume à destruição de sua beleza e à sua castração, como se sua estética e sua sexualidade fossem os motivos que levaram à atitude de um homem. E a vingança ao feminino que se destaca em Medusa vem justamente da deusa que nasce da mente (ou da mentalidade?) do maior arquétipo masculino do panteão olímpico, Zeus. Um dia, sentindo uma forte dor de cabeça, o deus usa um trovão para rachar seu crânio e, dele, nasce Atena, a deusa virgem da sabedoria, da estratégia, da inteligência.
E o que a história de Medusa nos diz além da culpabilização da vítima e da rivalidade feminina?
Não olhe para a mulher selvagem, artroz, ferida, com raiva. Não ouse mirar seus olhos porque seu coração também se transformará em pedra, disseram – sem saber que uma mulher ferida, punida e injustiçada carrega não a frieza, mas a brasa, o fogo desvairado, a busca por compaixão e a criatividade.
Medusa guardou tanta potência criativa de uma voz não ouvida que, na hora de sua morte, nasceram dois filhos de seu pescoço – o cavalo alado Pégaso e Chrysaor. Até quando perde a vida nas mãos de outro homem, ela produz.
Mas uma mulher com raiva não é bem aceita – terá sua cabeça decepada por um homem que será chamado de herói. No caso de Medusa, Perseu foi seu algoz. A tríade de irmãs é desfeita e, no momento em que percebem o assassinato de Medusa pelo homem, Esteno e Euríale iniciam sua caça e seu lamento. Novamente, Atena joga contra outras mulheres – ao ouvir o sofrimento das górgonas, se sente “inspirada” a criar uma flauta que imite a sua lamúria. No entanto, no momento em que a deusa toca o instrumento, repete não só os gritos angustiantes, como também as feições terríveis e monstruosas dos rostos que os emitiam. É o espelho em ação… uma mulher que julga e faz chacota da dor feminina não percebe que é sua própria dor que despreza – se transforma na deformidade que atribui à outra.
Também é interessante observar que Medusa possui limitadas faces em suas representações, sejam pinturas ou esculturas – a feminina e sedutora, o olhar horrendo frente a morte ou uma expressão monstruosa e grotesca. São as únicas versões possíveis que quem vê de fora – ou seja, a sociedade – atribui à mulher, uma criatura tão complexa e de uma infinidade de emoções.
Talvez por isso tenha me intrigado com a obra de Luciano Garbati, artista argentino que em 2008 esculpiu a inversão de papeis com sua “Medusa com a Cabeça de Perseu”. Finalmente, podemos olhar nos olhos dessa mulher e enxergar sua dor e sua humanidade.
Na época, a intenção de Garbati foi a de criar uma resposta à obra de Benvenuto Cellini, do século XVI, “Perseu com a Cabeça de Medusa”. Dez anos depois, em 2018, sua heroína foi parar em frente à Corte Criminal em Manhattan, Nova York – a mesma em que Harvey Weinstein foi julgado. Medusa foi reimaginada como a representação do triunfo de vítimas de abuso sexual e virou símbolo do movimento #MeToo.
Apesar de não ter sido a intenção inicial do artista, Garbati relata em entrevista ao New York Times que o processo da escultura o ensinou como ele mesmo era produto de uma sociedade patriarcal.
Fato é que todos nós somos, homens e mulheres. Mas quão potente é podermos observar e analisar histórias já contadas e reimaginá-las, aprender com as curvas tortas, mudar o script?
Encarei a Medusa de Ephesus por algum tempo. Mirei seus olhos salientes e prometi que leria sua história de novo – e agora que a deixei conversar comigo, sinto que contribui um pouquinho mais para tentar reparar a justiça que ela não encontrou.
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