Dia desses fiz um funeral pra mim mesma.
Calma, continue lendo que prometo fazer sentido – o funeral foi só uma forma que encontrei de ritualizar minha passagem por mais um portal, de honrar um ponto de virada e o desapego do que não servia mais. Celebramos o nascimento, mas não a morte – sendo que em verdade o primeiro não existe sem o segundo. Esperamos ansiosos pelo aniversário mas adiamos ao máximo o adeus.
E nessas de fugir das dores das despedidas, passamos batido por um monte de encerramentos de ciclos – quando vai ver, já foi e você nem viu… continua vivendo uma fase que já acabou, vira um fantasma.
Me faz lembrar de um relacionamento que tive anos atrás – na época, a terapeuta decretou: “o amor às vezes vira um defunto no meio da sala. O corpo está ali, cheirando, e precisa ser enterrado… você já percebeu e está passando pelo luto, mas ele está fingindo não ver.”
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Venho descobrindo que uma das linhas condutoras da Jornada da Heroína é esse eterno ciclo da vida-morte-vida, o infinito, a cobra que morde o rabo, a fênix que renasce daquilo que já queimou. Pra se encontrarem, mulheres precisam trocar de pele inúmeras vezes, se livrar das camadas que nos acrescentaram – os tais padrões de beleza e de comportamento – e daquelas que criamos como resposta a um mundo tão hostil ao feminino. Nosso próprio corpo dá a pista do caminho a seguir: o que é a menstruação senão a morte e a despedida do que não era pra ser, do que já perdeu a função? Mas é também o prenúncio de um novo ciclo. A lua mingua pra lua nova chegar – não há vida sem a morte.
E quem nunca assistiu um filme em que o protagonista revive o mesmo dia incontáveis vezes? Na jornada arquetípica desse herói que morre e se regenera o entorno nunca muda, quem vai se transformando é ele. Ele permanece preso no looping de tempo e a mesma situação volta até que a lição seja aprendida, até que o herói entenda o que precisa morrer. No momento em que ele vira a chave, o ciclo é encerrado, ele passa de fase e o meio ao redor também evolui: o novo dia finalmente chega e a vida pode avançar.
Ou seja, para curar o mundo, comece curando a si mesmo. Para curar a si mesmo, comece identificando partes suas que são tóxicas e obsoletas – aquilo que envenena e atrasa você e aqueles ao seu redor, que não faz mais sentido por não estar alinhado ao seu propósito – e que precisam ser liberadas pra você poder seguir.
Por isso a necessidade de honrar aquilo que devemos deixar ir – identificar uma versão sua, uma crença, um relacionamento, um hábito, um medo que já não servem mais é sinal de que você está no caminho certo, está se reinventando e evoluindo. Se deixamos pra trás é porque estamos à frente.
Importante dizer que a jornada da heroína se difere nesse ponto: em um jogo chamado mundo que preza mais as conquistas masculinas, mulheres precisam celebrar quando conseguem se livrar também das regras… Se reinventar o tempo todo como uma forma de “rexistir” – resistir aos moldes e caixas e prisões em que querem nos meter enquanto tomamos as rédeas do nosso ser. Ninguém comanda, valida, autoriza ou aprova minha própria existência senão eu mesma.
E aqui entra o ritual como uma forma de marcar as batidas de tempo e de ciclos, firmar a presença no processo. Materializar o abstrato, dar forma ao incompreensível, trazer pra superfície e organizar em átomos o caos que acontece nas camadas mais profundas. É o masculino canalizando, materializando e dando objetividade ao mistério e ao caos próprios do feminino numinoso.
Justamente por eu ser a comandante do meu ser, quis estar presente pra essa minha morte. Marina, aquela que veio do mar: entreguei de volta às águas e aos cuidados das ondas a menina com todos os seus medos, crenças e padrões. Ela sempre fará parte de mim, mas preciso abrir ainda mais espaço para a mulher que está chegando. Foi um funeral lindo, com cheiro de sal e de felicidade.
Que o mar carregue minhas preces…
[…] Dali foram outros dois meses e muito aconteceu: voluntariei com o grupo Pamoja e levamos 8 toneladas de comida a Lamu, o arquipélago cercado por terroristas do grupo Al-Shabaab; fiz minha primeira aula de kite-surf; viajei por quase toda a costa, nadei com algas bioluminescentes, descobri um cânion que muitos quenianos nunca ouviram falar; entrevistei mulheres, fiz amizades incríveis e não só conheci uma artista inspiradora de 13 anos lutando pra voltar às aulas, como fiz a ponte para uma doação que quitou suas dívidas e a de seu irmão com a escola. E se eu descobri meu coração da leoa no Kilimanjaro, foi nesse meio-tempo que ela passou a se revelar ainda mais pra mim: dei um salto inimaginável na relação comigo mesma… ao ponto de fazer meu próprio funeral. […]