“Não queria ter que dizer que é um movimento, mas é: Mulheres sul-africanas da minha idade que não têm filhos estão sofrendo. Falo de uma questão invisível, não palpável, que sabemos existir. É esperado de nós. Temos prazo de validade. Mas a vida não acontece sempre assim, seguindo um script.
Minha história é só uma dentre tantas, mas vou contá-la. Podem pensar que ela começou entre meus 28 e 30 anos, com as pressões que uma mulher sul-africana passa quando se chega a essa idade. E não foi diferente comigo: apesar de ter o desejo de ser mãe (que provavelmente surgiu pela expectativa sobre mim), as pessoas ao redor me viam com suspeita e questionavam.
Mas se quer saber onde minha história de mãe sem filho realmente começou, eu voltaria até meus antepassados. Eles têm um certo chamado para se tornarem “healers” e eu fui convocada pra curar as pessoas espiritualmente também. Então o fato de eu ainda não ter filhos foi uma condição dos meus ancestrais para que eu pudesse me tornar uma healer como eles. Eu podia ouvir o vazio e a secura do meu útero e sabia que ele estava morto. Os ancestrais me diziam que eu não podia reproduzir porque não estava criando nada. Mesmo assim, muitas vezes vi meus filhos nos meus sonhos. Os ouvi, toquei, senti. Sempre tem aquela linha tênue entre uma ilusão e uma realidade… e tem a dor de uma mulher que não tem seus filhos no meio.
E desejei tanto que ano passado me aproximei de um profeta que me prometeu um útero. Ele fazia parte de uma congregação – na África do Sul temos muitas porque o povo sente que essas igrejas que aceitam e respeitam nossos ancestrais são um refúgio – e minha esperança renasceu porque todas as mulheres ali estavam carregando bebês.
Então eu e o profeta começamos a namorar. Durante 8 meses não tivemos relações sexuais, mas ele dizia que íamos ter filhos, que os via. No meu desespero, entrei num processo de limpeza e de tratamento espiritual do útero. Foi dolorido, mas na África do Sul as mulheres crescem sob a compreensão do “morrer pela beleza”, nada é de mão beijada. É algo cultural especialmente presente no ritual de trançar os cabelos das mulheres negras, que é dolorido.
Finalizado o processo, chegou o momento de partir para a peregrinação até uma montanha no Zimbábue. O fato de ir lá como comunidade e, mais do que isso, com um grupo de mulheres da congregação que eu confiava e que me entendiam me dava fé. Seus maridos aqueciam águas santas e me prometiam que funcionaria porque tinham testemunhado. Subi naquela montanha com a fé de que quando descesse, minha vida seria outra.
E desci. E comecei a ter relações sexuais com o profeta. E o tempo todo eu sentia a presença dos meus ancestrais – mas eles agiam para repelir os homens ao reforçar minha energia masculina. Por mais que me dissessem pra não alimentar os pensamentos negativos, que era uma paranoia, eu sabia que era real. Um dia, o profeta disse: “há algo que você ainda não sabe, que não te contei. Você nunca terá filhos.” Aquilo me destruiu. Eu morri de novo.
Aliás, é uma morte constante em minha vida. Eu sei que tenho o feminino dentro de mim, eu sinto que está lá – mas fico andando em círculos, sem nunca conseguir chegar ao centro. O que mais me doeu foi que ele usou a palavra “nhumba” – fruitless, infértil.
Minha raiva também se voltou às pessoas da igreja porque eles haviam me prometido. Dois meses depois da minha peregrinação, trouxeram uma mulher do Zimbábue e dois meses depois ela estava grávida do profeta. Ver aquelas pessoas que antes rezavam por mim rezarem por ela me doeu.
No final do dia, eu ainda ouvia… o tom podia ser outro, mas a música da secura no útero era a mesma. Resolvi encarar a verdade e desisti de tentar engravidar. Um healer pode curar outras pessoas, mas não pode se curar. É pela minha dor que eu curo. Foi quando abracei quem eu era que me dei conta de que era uma mãe sem filhos, mas ao mesmo tempo com potencial de ter muitos – o fato de não ter meu bebê me faz direcionar os meus cuidados e o meu amor às pessoas. Sou uma mãe por onde quer que eu vá – atraio crianças que me ajudam a completar meu ciclo. Também sou uma professora por profissão. Todo ano dou à luz a 30 crianças. No começo não entendia, mas elas começaram a me desenhar e alguns perguntavam se podiam me chamar de “mama”. Agora eu entendo e aceito.
Ironicamente, tenho mommy issues – apesar de achar que isso é algo que toda mulher passa mas não quer admitir. A verdade é que estamos vindo de relações tóxicas com nossas mães. O feminino ficou ferido por tanto tempo, mas sinto que chegamos ao ponto em que as mulheres estão finalmente sendo mães umas para as outras, cuidando de si. Minha mãe me excluiu de sua vida porque não segui o caminho tradicional – estudar, trabalhar, ter um homem (“por que você nem consegue segurar um?”), ter um lindo casamento pra dar aos outros, ter filhos. Uma vez que não segui a trilha que ela tinha idealizado pra mim, nossa relação quebrou.
Sei que a infertilidade vai me assombrar pra sempre. Mas recentemente tive um sonho com meu avô que nem conheci – ele carregava um bebê no colo e me dizia que ele precisava voltar, mas que precisava ser por meio do meu ventre. Estava ocupado procurando o homem certo para fazer moradia e então chegar até mim. Disse também que eu teria um filho aos 36 anos. Hoje tenho 32. Não estou longe… mas todas as minhas amigas têm filhos e isso dói. Ao mesmo tempo, minha condição me permitiu não ter gastos com filhos agora e, por isso, comecei a viajar. Tenho tempo pra mim, pra construir um caminho que não é o que todo mundo segue. Pra ser minha própria mãe.“
Quando encontrei Gabi no fundo de um quintal moçambicano que fazia vezes de galeria de arte, ela brincava com uma pequena de menos de dois aninhos. Fiquei sem entender nada quando soube que não era sua filha – mas depois que ela me contou sua história, compreendi perfeitamente: a maternidade faz tanta parte de sua essência que é impossível até pro inconsciente de quem a conhece dissociar uma coisa da outra.
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