Fui despejada pelo host – de novo

Matabicho estava estranho.

– Cara, você não pode ir com essa roupa entrevistar a escritora. Ela é uma intelectual, não pode se vestir assim.

Eu estava com uma camiseta branca, shorts e meus chinelos amarelo-gema. Senti uma eletricidade percorrer minha espinha e o rosto queimar. Pelo peso do seu tom e o olhar que me lançou, tinha dito aquilo com a intenção de me diminuir, não de aconselhar.

– Matabicho, eu não estou indo entrevistar ninguém, só vou encontrar com uma amiga. Eu tenho algumas camisas, calça e um vestido, mas sinto muito, é isso. Sou uma mochileira viajando com pouca coisa, então se não é o suficiente, paciência.

Acho que ele catou meu sarcasmo e se injuriou por eu ter rebatido. Logo em seguida, soltou:

– Cara, até quando você pretende ficar? Precisamos acertar.

– Acertar?

– Sim, as diárias do Airbnb. São 2 mil meticais por dia.

O sangue todo que tinha sentido em meu rosto antes evaporou. Esse valor seria um equivalente a R$150/dia e eu já tinha ficado cinco. Enquanto isso, a mente zunia: “Não é possível, não estou louca, ele tinha me oferecido ficar aqui de graça”

*
Só pra recapitular: ainda quando estava no Brasil, uma amiga que viajou a Moçambique tinha me recomendado ficar na casa de um host na favela de Polana Caniço, que ele havia transformado em guest house. O preço no Airbnb, no entanto, era astronômico pra mim – afinal, R$ 140 a diária é bastante pra qualquer mochileiro. Cheguei a mandar mensagem pela plataforma perguntando se rolaria um desconto, mas acabamos não seguindo conversa.

Depois, quando eu estava em Cape Town tentando entender se eu precisava ou não de uma carta-convite pra aplicar ao visto moçambicano, lembrei dele e escrevi perguntando. Ele me ligou na hora, conversamos e ele aparentementemente simpatizou com minha história de mochileira e com a ideia do projeto Womanifests – mais do que isso, praticamente me adotou. Disse pra não me preocupar pois eu seria a convidada dele e poderia ficar lá na guesthouse. Me ajudou a esquematizar um roteiro por Moçambique, emprestou uma barraca pra economizar na hospedagem em Tofo e ainda falou que me conectaria a mulheres-chave pra que eu pudesse entrevistá-las: uma artista, uma escritora, uma bailarina… Agradeci à vida por ter me dado mais um anjo de viagem.

*
Minha cabeça retornava à nossa primeira conversa pelo telefone compulsivamente e tentava encontrar o que eu tinha entendido errado, se eu tinha imaginado ou distorcido algo.

É uma mania que muitas mulheres têm essa de ficar se questionando, duvidando da própria sanidade. Um hábito milenar fruto de uma lavagem cerebral implantada pra nos manipular e que vira uma crueldade em forma de chicote – custa muito aceitar que você tem razão e que está no seu direito de se manifestar diante de um homem que te contraria. Eu não estava louca. Lembrava com clareza suas palavras depois de eu contar sobre meu projeto e estilo de viagem: “vá para Vilanculo descansar e quando chegar a Maputo, vais ficar comigo na minha casa, é minha convidada, não vai pagar nada. E então vamos trabalhar. Vou colocar você em contato com mulheres para entrevistar”.

Respirei fundo. Saquei que estava diante de um caso de psicose masculina. Não entendia por que ele tinha virado a chavinha – tinha sido um querido até então. Desde que cheguei em Maputo, ficamos totalmente focados no workshop de dança que ele participou e em um ou dois dias, quando ele ficou fora em seus compromissos, fui sozinha ao centro da cidade para encontrar com Paola, amiga brasileira que tinha conhecido no meu primeiro round em Johannesburgo. Enquanto isso, todos os dias pedia o contato das mulheres que ele havia indicado pra já tentar marcar uma entrevista e ele esquivava. Até que na noite anterior à conversa fatídica, de tanto insistir, me passou o número da escritora.

– Matabicho, eu devo ter entendido errado. Quando falamos ao telefone você disse que eu poderia ficar aqui sem pagar, que eu era sua convidada.

– Cara, o que é isso? Quem viaja e fica na casa das pessoas sem pagar nada a elas?

– Bom, Mata, eu. E vários outros mochileitos que viajam com low budget. Não sei se você conhece uma plataforma chamada Couchsurfing – os locais viram anfitriões dos viajantes e oferecem um lugar pra dormir sem pagar nada. O que se espera é só uma troca cultural.

– Mas você me achou no Airbnb, você sabe que aqui é uma guesthouse. Como é que você espera que a pessoa pague sua comida, sua água, sua luz?

Segurei a língua nessa hora – eu havia comido um pouco de chima que ele tinha preparado no dia em que cheguei, depois do workshop, porque eu não tinha dinheiro vivo comigo e não tinha dado tempo de ir ao mercado. Mas no dia seguinte comprei minha comida. Fora que a energia caía todos os dias e não tinha papel higiênico. Também não estava tirando a vaga de um cliente porque, além de mim, só Jojo, um amigo fotógrafo de Mata, estava lá. Se ele estava gastando algo comigo, era água.

– Mata, entendo. Mas eu tinha te falado que a diária era cara e que não cabia no meu bolso. Fora que não confirmei nenhuma estadia pelo AirBnb. Eu não teria vindo se não fosse por você me dizer que eu era sua convidada… Seria muito mais barato ficar num hostel. (ah, não… não, Marina, não deixa isso acontecer!!)

Mas aconteceu. Os olhos explodiram em lágrimas e o rosto desfigurava enquanto eu soltava a última frase: “Eu não tenho todo esse dinheiro que você me pede e sinceramente não sei como vou fazer pra te pagar agora…”

– Cara, não precisa chorar. Eu já entendi tudo. Não precisa pagar nada.

Fazia força pras lágrimas não caírem – não queria dar esse gostinho pra ele -, mas não deu pra evitar. Pus o rosto entre as mãos e comecei a soluçar porque me sentia envergonhada, péssima, ingrata, burra, humilhada. Disse que sentia muito e que pagaria de alguma forma. Imediatamente entrei no quarto e comecei a arrumar meu mocilão. Não sabia pra onde iria, mas não ficaria ali nem mais um dia. No meio da minha bagunça, decidi que, se servisse, daria meu tênis da Nike pra ele – como era bailarino, podia agregar algum valor. E serviu…

Com o mochilão nas costas, saí na rua. Ele trancou o portão e nem se importou em me levar até a chapa, como já tinha feito em outras vezes. A questão é que eu não sabia qual pegar nem se eu poderia entrar com meu mochilão, que certamente tomava o lugar de um passageiro. Até que lembrei do Fatima’s, hostel que eu havia ficado antes de ir pro Tofo e que sabia ter wifi. “Certo”, pensei. “Só preciso de um lugar seguro com internet pra respirar e então posso decidir o que fazer”.

Fiquei no ponto por uma hora e meia – nenhum queria me deixar entrar, mesmo tendo espaço. Eu não insistia porque ainda fazia força pra segurar o choro por trás dos óculos escuros e não queria discutir em baleiês. Até que passei pra fase da raiva e, finalmente, dei uma dura em um dos motoristas que parei. “Não precisa mentir que não tem espaço porque eu tô vendo que tem. É dinheiro que você quer, então eu pago por mim e pelo assento do meu mochilão”. Eles me deixaram entrar depois que acertamos que eu pagaria por 4 assentos.

Chorei o tempo todo até chegar no hostel e, depois que entrei, chorei um pouquinho mais. Por sorte, Paola pegou minha mensagem e falou para ficar com ela – era o último dia de outra brasileira no apartamento e um quarto ficaria vago.

No caminho até lá, decidi que ficaria só mais dois dias em Moçambique. Era a segunda vez que passava por essa experiência de despejo e de novo a sensação de não ter um lar, de não ser bem-vinda e de estar vulnerável batiam na minha porta. Precisava me sentir acolhida e sabia que encontraria esse piques com os meninos em Johannesburgo.

No fim, nunca vou saber por qual razão tomei uma invertida do Matabicho. Conversando com Paola e Camila mais tarde (além de outras mochileiras pras quais contei a história ao longo da viagem), arregalei os olhos com o que hoje desconfio ser a resposta: em algum lugar da mente fértil masculina dele havia a possibilidade de rolar algo entre nós mas, quando percebeu que não pagaria de determinada maneira, forçou para que pagasse de outro. Um risco que muitas mulheres viajantes podem ver se tornar realidade…

Quando me perguntam como fui capaz de ainda por cima dar meu tênis pra ele depois do que fez, penso em duas alternativas. Sim, foi uma coerção psicológica – me sentia envergonhada e por isso achava que realmente devia algo a ele. Mas também foi a maneira que encontrei ali na hora de realmente tentar agradecer justamente por tudo que ele tinha feito… antes. Ele me ajudou de muitas formas – eu ainda não sabia, mas a principal delas estava materializada no meu bolso, em um número de telefone anotado num papel.

Marina Pedroso

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