Dia #3
Shira Cave Camp (3.750m) >>> Baranco Camp (3.900m)
Foi um dos trechos mais bonitos e mais irritantes pra mim. Freud jamais explicaria porque ele não fez a trilha do Kilimanjaro com dois joelhos que poderiam potencialmente dar errado. Eu já vinha sentindo algumas pontadas no dia anterior, mas fingi que não era comigo. O que não dava pra ignorar era a dor insana nos pés por conta das bolhas e de duas unhas roxas.
O dia estava só começando e pela frente vinham 10 km até o Baranco Camp – conhecido também como a Cidade pois todas as rotas fazem uma intersecção lá e, assim, o acampamento fica lotado de gente.
Começamos a subida, um plano íngreme de pedras serrilhadas. Ao nosso redor, mais pedras vulcânicas dispostas aleatoriamente pelo caminho, como se um gigante tivesse cuspido todas pra cima sem se preocupar onde cairiam. À frente, uma imensa montanha nevada dava a energia que a falta de oxigênio tirava. Não sentia mais efeitos de tontura ou dor de cabeça pela altitude, mas o corpo começava a pesar e, cada passinho, custar.
Muitos morros depois, avistamos a Lava Tower, um imponente paredão que poderia ser um dente canino da montanha. De fato, era o ponto mais alto da trilha naquele dia. Acampar em pontos mais baixos do que a altitude máxima que batíamos na trilha durante o dia ajudava na aclimatação e era uma das vantagens da Machame Route. Enquanto alguns grupos montavam barraca para passar a noite ali, paramos apenas para descansar e comer. A quantidade de corvos era tremenda e, combinada ao céu fechado e à neblina densa e fria que se arrastava sobre o monte, o cenário ganhava ares de filme de terror.
Do alto da pedra imensa que eu e Glauco subimos para sentar, vi pequenos ossinhos espalhados pela pilha de pedras abaixo de nós e fiquei intrigada. Quando abri a caixa de lanche e me deparei com uma perninha de frango enrolada em plástico filme, xinguei turistas porcos mentalmente achando que tratava-se de lixo deixado ali. Mas enquanto desembrulhávamos a comida e mais corvos começavam a sondar e cacarejar à nossa volta, Glauco soltou um grito: “Olha!”
Era um ratinho da montanha. Dois, três. Então me veio – era muito provável que estivéssemos sentados sobre um cemitério deles. Daí os ossinhos, daí os corvos vigilantes. Definitivamente, um filme de terror para alguns… mas somente a natureza das coisas para outros.
Créditos na tela, hora de ir. Um enxame de trilheiros iniciava a descida pelo vale e entramos no fluxo. Quando avistei as duas rochas colossais que formavam a fenda pela qual passaríamos, percebi o quanto éramos pequenos diante da montanha que ousávamos conquistar. Nem todos ali teriam sua permissão para alcançar o seu cume – e fiquei me perguntando quais critérios separavam aqueles que conseguiriam. Seria também uma seleção natural? Uma orquestra regida pelo maestro Kilimanjaro? Ou tínhamos algum livre-arbítrio sobre a natureza das coisas?
Senti uma forte dor aguda nos joelhos e soube que não tinha mais volta – a partir dali, seria uma negociação constante com eles para seguirmos apesar da reclamação. Diminuí o ritmo e fomos ficando para trás. Em determinado momento, já éramos os últimos da trilha. Em meio ao nevoeiro, percorremos um vasto acampado até chegar em ilhas de coqueiros alienígenas e cachoeiras. O cenário era estarrecedor. Glauco foi na frente com Uill e segui com Razzak até, enfim, chegar a Baranco. Mais uma etapa vencida.
DIA #4
Baranco Camp (3.900m) >>> Karanga Camp (3.995m) Barafu Camp (4,645 m)
A noite tinha sido congelante – coloquei todas as roupas no corpo e tentei me embrulhar com o saco de dormir ralo, que ficava úmido com a temperatura e a falta de um plástico entre o solo e a barraca. Peguei no sono por cansaço, mas acordava toda hora.
E, claro, protagonizei uma cena daquelas. Com a bexiga doendo mas sem coragem de sair no vento cortante e encarar o banheiro no escuro (correndo o risco ainda de não acertar o buraco no chão), cedi à ideia de girico do Glauco: agachada e segurando suas mãos pra criar tração, fiz uma abertura no zíper grande o suficiente para empinar o bumbum pra fora da barraca. Acabei demorando o dobro de tempo pra fazer xixi e quase congelei o derriére porque não conseguia conter a crise de riso.
Já pela manhã, acordei e encontrei a Cidade totalmente vazia – só havíamos nós e alguns últimos porters desmontando as barracas daqueles que já haviam partido. O sol beijava minha pele quando Razzak chegou com as informações sobre o itinerário do dia.
“Primeiro vamos subir o paredão”, disse enquanto apontava para trás das minhas costas. Quase engasguei na minha própria saliva com o que eu vi. Uma muralha tão alta e chapada que, se tivessem me dito que as cenas de Game of Thrones tinham sido gravadas ali, não duvidaria. Quando me perguntei como raios subiríamos aquilo, avistei a linha zigue-zague de minúsculos pontinhos coloridos que ia da base ao topo e ouvi gritos de comemoração ecoando do alto. “Para chegar até ali, serão 2h”, continuou Razzak. “Caminhamos mais um pouco, paramos pra almoçar e seguimos direto até o Barafu Camp, o acampamento-base. Descansaremos 2h antes de atacar o cume.”
Arregalei os olhos. “Vamos atacar o cume ainda hoje???”
Claro, fazia sentido. Estávamos no inicio do 4º dia, sendo que eram seis no total. Precisávamos fazer também a caminhada de volta até a entrada do parque – apesar de ser uma rota diferente da que usamos na ida, obviamente não daria pra fazer todo o percurso em um dia.
Senti um gelo na barriga de emoção, de nervoso, de ansiedade.
Levei 10 minutos pra colocar as botas, que àquela altura já tinham virado uma prática de tortura. A pele dos calcanhares estava aberta e, as unhas que ameaçavam cair, roxas. Eu via estrelas a cada centímetro que escorregava pra dentro, mas não tinha outro jeito.
A subida do paredão foi mais suave e congestionada do que imaginei. Eu já mencionei que gosto de trechos que tem mais pegada de escalada, mas sei que sou maluca. Muitos trechos eram realmente arriscados e paralisavam o pessoal, fora a dificuldade e os riscos que os porters passavam carregando bagagens pesadíssimas com barracas, mantimentos e mochilas. Olhar para baixo dava vertigem e qualquer erro podia levar a uma queda vertical feia.
Mas ei, comprovei aquilo que dizem sobre a vista do topo ser melhor. Estávamos literalmente acima das nuvens e do Mawenzi. Quando olhei pra trás, parte do Kilimanjaro nos encarava com seu paredão imponente e cheio de neve. A festa que todos faziam ao chegar era contagiante – um senhor de idade inclusive caiu tentando tirar uma foto saltando, coitado.
A trilha seguia por uma planície desértica. À medida que o oxigênio vai se tornando rarefeito, assim também acontece com a própria vida – víamos cada vez menos arbustos e borboletas no caminho. No meio, pude avistar o acampamento e vibrei porque tinha sido mais fácil do que pensava.
Mas assim que chegamos no horizonte, o coração afundou num grau que nem sei explicar: entre nós e as barracas coloridas havia ali uma fenda monstruosa na montanha e, claro, tínhamos de descer para então subir.
A frustração me deixou de mau-humor. Estava exausta e morrendo de fome, só queria chegar logo – mas, pra ajudar, Glauco parava a cada cinco minutos querendo tirar foto com qualquer pedra, atrasando ainda mais. Ele poderia recuperar o tempo perdido, mas eu tinha dois joelhos reclamões e não conseguia acelerar o passo, de forma que a falta de empatia dele comigo me irritava.
A subida foi pior – íngreme que só, contávamos ainda com um sol ferrenho e a falta de qualquer vento pra amainar. A fome latejava e sentia a pressão baixar vez ou outra, mas segui até chegar no segundo topo do dia. Eram 14h e, quando o almoço veio, quase desfaleci: batata-frita e uma salada de pepinos. Francis, o chef, explicou que tínhamos de comer leve por causa da altitude, mas mesmo assim… tinha algo estranho.
O golpe
Víamos todos os trilheiros que estavam conosco na Machame montando acampamento e então fomos informados que só pararíamos ali para o almoço – nosso grupo iria pular o Karanga Camp e seguir direto para o acampamento-base, que ficava a outras 4 horas de distância. E foi aí que entendemos a dimensão do itinerário. Questionamos Razzak e fizemos as contas.
Já havíamos andado 7 horas até ali. Somando + 4 horas até o acampamento-base, daria 11 de trilha no total. Então, descansaríamos 2 horas e, às 23h daquele mesmo dia, iniciaríamos o ataque ao cume. A subida nos levaria +6 horas e, a descida, +3. Chegando de volta ao acampamento-base, descansaríamos somente 1 hora e seguiríamos direto para o próximo acampamento, já a caminho da saída do parque, por outras 2 horas. Aí é que dormiríamos.
Quer dizer… desde o momento em que acordamos no 4º dia, deveríamos trilhar 22 horas para apenas 3 de descanso. Não dormiríamos até chegar no outro acampamento na tarde do 5º dia. E eles queriam que fizéssemos isso com uma salada de pepino e batatas-fritas?
Então percebemos a pegadinha. O desconto que havíamos conseguido no pacote não tinha sido um desconto, mas uma diária a menos. Todos que estavam montando as barracas ali estavam fazendo a Machame Route em 7 dias e por isso não pulariam a pernoite como nós. Acordariam no dia seguinte para seguir até o acampamento-base e fariam o mesmo esquema de descansar um pouco antes de subir o cume às 23h, mas teriam uma noite a mais de descanso. O golpe, meu pai…..
Glauco ligou para Ibrahim e discutiu com ele. A resposta foi: “mas eu mostrei pra vocês todos os acampamentos que vocês iriam ficar”. É. Ele mostrou uma lista com nomes que nunca vimos antes e nós deveríamos ter adivinhado que viraríamos a noite e emendaríamos no ataque ao cume, a parte mais difícil da jornada. Isso porque eu disse que queria a Coca-Cola Route, que sabia exigir menos esforço físico. O ladrão nos enganou certinho – e, a título de conhecimento, o nome da agência que NÃO recomendo é a Meru Mountain Treks.
Agora tínhamos um abacaxizão nas mãos. Glauco e eu acabamos discutindo no nervosismo da situação. Na minha visão, não adiantaria esbravejar por algo que já estava feito. Precisávamos fazer o melhor com o que tínhamos em mãos e o tempo estava passando. Dissemos que queríamos ter uma noite de descanso assim como todos os outros trilheiros e Razzak nos deu a lista com todas as taxas dos parques e os salários de mais uma diária. Já tínhamos dito que pagaríamos, mas os meninos da equipe continuavam com olhares assustados. Razzak e Francis suplicavam para seguirmos pois sairia muito caro para nós, que não era tão simples assim… Glauco tinha se zangado e se isolado, deixando a decisão nas minhas mãos. Então tá: decidi que iríamos tentar com a condição de que pudéssemos descansar no acampamento-base por mais tempo na volta do cume. A comemoração dos meninos e os abraços me surpreenderam – ainda não entendia por que era tão importante para eles que não esticássemos uma diária a mais.
Avante: a força de mil mulheres
Começamos a subir o morro. Meus pés gritavam comigo, mas nem me importava mais. O problema era encarar mais três horas de trilha apesar da exaustão. Um passo atrás do outro, mergulhava cada vez mais na minha cabeça. Quando adentramos no que pareceu um deserto – uma vastidão de terra vulcânica arenosa e nenhuma forma de vida à vista –, pensei na minha mãe, na minha avó, na bisa e em mil mulheres que vieram antes de mim e que não tinham tido as mesmas oportunidades que eu. Eu era a primeira da minha linhagem a subir aquela montanha. Pude trabalhar e juntar dinheiro para bancar a viagem. Pude negar as caixas que diziam ser meu lugar por ser mulher e escolher um caminho diferente.
Senti uma série de acontecimentos e sacrifícios que aconteceram até então para que eu tivesse a liberdade de alcançar um cume. Como uma pirâmide de mulheres se sustentando para que eu pudesse subir até o topo – e elas estavam indo comigo. Eu estava caminhando e tinha a força de mil mulheres dentro de mim. A revelação me fez cair no choro. Olhei pra montanha e soube naquele instante: ela não só me dizia que eu tinha sua permissão para chegar lá, como já estava no cume. O futuro já tinha sido decidido por todas as mil mulheres do meu passado.
Despenquei no chão assim que chegamos no acampamento-base. O sol estava se pondo, deixando um rastro dourado no ar, e o frio que o vento trazia apertava os ossos já doloridos. Eram 19h e, segundo o itinerário do golpe, às 23h deveríamos começar o ataque ao cume. Tinha um porquê de ser esse horário – o objetivo era chegar ao cume com o sol nascendo. Fui dormir com a roupa de ir e, mesmo com a ansiedade bombando e os chicotes do vento contra a barraca, consegui apagar.
Um minuto depois (ou pelo menos pareceu), alguém dava tapas na lona: “let’s go!” Como uma mola, meu corpo sentou. Quando comecei a vestir as luvas, Glauco soltou: “meu deus, Marina, você é maluca mesmo. Você tá indo de verdade!”
Olhei pra ele e vi uma cara incrédula. Ele continuou. “Olha, eu sei que você vai ficar chateada e me dói fazer isso porque sei o quanto você quer chegar lá. Mas queria que você ouvisse a minha proposta. Minha ideia é falar com Razzak para dormirmos mais e começarmos a subida de manhã. Vamos perder o nascer do sol, mas acho que assim vamos ter mais chances de chegar. É loucura ir agora, nosso corpo não vai aguentar. Se você quiser ir, tudo bem, mas então eu não vou.”
Ele terminou dizendo que tinha recebido uma mensagem que considerou ser um sinal do universo. Sem saber o que estava acontecendo, sua irmã escreveu pedindo para ele respeitar seu corpo e seus limites. Quem conhece o figura sabe que ele já aprontou merdas na vida dignas de um “Se Beber Não Case 5784” – não estava falando aquilo por falta de coragem. E se o Glauco, O maluco, estava dizendo que aquilo era uma loucura…
Eu pensei por um momento e decidi. Tínhamos chegado até ali juntos e eu não iria subir sem ele. Além disso, da mesma forma como eu segui minha intuição decidindo por seguirmos apesar do golpe, eu precisava respeitar a intuição dele também que pedia pra nos preservarmos mais. Topei.
Ele imediatamente saiu da barraca e falou com Razzak. Ouvi as vozes do lado de fora, mas o vento era tão forte que abafava tudo. Quando voltou, disse que eu não iria acreditar no que ele tinha descoberto: O motivo real para os meninos insistirem tanto para não esticarmos uma diária era porque, por um erro de cálculo do cozinheiro, nosso gás tinha acabado e a comida estava nas últimas também – não teríamos lanches para a subida nem refeições no dia seguinte.
Fora o choque, ficou acertado que começaríamos o ataque na manhã seguinte. E assim foi.
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