No meio da minha paralisia na primeira semana de África do Sul e de Volta ao Mundo, aconteceu A., minha primeira host da vida no Couchsurfing. Eu só iria pra sua casa na semana seguinte, mas já vinha falando com ela pelo whatsapp desde o Brasil e fizemos amizade. Por isso, quando cheguei do aeroporto às 21h, mal deixei o mochilão encostar no chão do hostel e já estava topando o convite dela pra irmos até uma festa na cidade. Pouco importava que eu estava morta – que que eram quase 20 horas de viagem entre São Paulo e Cidade do Cabo e +5h de fuso horário? Estava doida pra aquietar a ansiedade e me jogar em tudo.
Uma hora depois do combinado, ela veio me buscar em sua moto. Reconheci-a pelo cabelo rosa que despontou na rua assim que ela tirou o capacete, subi na garupa e passamos a noite dançando no Asoka. Seguimos nos encontrando nos dias seguintes. A moto rodou pela cidade e me apresentou à Ultra Liquor Store (a.k.a Disney das cervejas locais), ao por do sol e às águas de gelo daquela ponta no oceano Atlântico na Clifton Beach II, aos bares na orla de Camps Bay e aos rooftops do centro.
Foi assim também durante a semana inteira em que fiquei em sua casa, no bairro de Sea Point. Cheguei em um domingo e, como tínhamos nos dado bem, em vez de três noites, ela me ofereceu ficar a semana inteira, até sexta-feira. Sua generosidade também se estendia às pontes que queria fazer entre meu projeto e as mulheres militantessul-africanas que conhecia.
Mas os dias passavam, nada acontecia e alguma coisa começava a me incomodar. Foi só quando chorei em uma das nossas idas à praia que percebi o quanto estava me sentindo culpada: muita cerveja e festa, nada de fazer o que eu estava ali pra fazer. Sim, estava me divertindo muito, mas queria retomar meu foco no projeto da viagem e buscar as histórias. Se eu saísse toda noite e acordasse tarde no dia seguinte não ia rolar. Então dei um basta de leve. Parei de esperar por ela e passei a pegar o ônibus para fazer qualquer coisa no centro. À noite, em vez do bar, tentava trabalhar no computador.
Foi assim que comecei a conversar com mulheres ambulantes. Todas imigrantes, ouvi suas histórias. Fiquei amiga da Fanny, um força da natureza malawiana que por sua vez me levou até o centro de refugiados montado em Green Market Square como resultado da onda xenófoba no país. Ela foi entregar folhetos que havia impresso pra ajudar na causa e eu acabei falando com o líder do movimento, JP, que me guiou para dentro.
O que vi partiu meu coração: cerca de 800 mulheres e crianças com as vidas em stand by. No momento da minha visita, em dezembro/2019, estavam completando quase dois meses de ocupação. Quatro grávidas já haviam dado à luz ali e a situação não se resolvia por um embate de diversas frentes.
Corta cena. Cheguei elétrica na casa de A. A meia-noite de quarta-feira tinha virado e eu ainda martelava o teclado tentando cuspir tudo que tinha sentido depois de conhecer o centro de refugiados. Ela me solta:
– Pra onde você vai depois daqui?
– Não sei ainda, mas já vou começar a procurar mesmo pra sair na sexta.
– Olha, tem uns descontos ótimos no Booking pra diárias de hostel começando amanhã.
– …?
– NOSSA, tenho hóspedes chegando na sexta-feira! Tinha esquecido!
– …
– Caramba, meu primo também chegou na cidade. Ele quer sair pra me levar pra jantar.
– A., você quer que eu vá embora?
– Sim, agora de manhã. Preciso que você se planeje.
Pausa. Tento aquietar o desespero e não consigo.
-Tudo bem, vou fazer isso. Mas tinha entendido que nosso combinado era sexta-feira.
– É, mas não estou me sentindo bem e quero ficar sozinha antes de receber outras pessoas.
Repito: já tínhamos passado da meia-noite. Com um nó na garganta, fiquei até às 2 da manhã procurando outro lugar pra ficar – ao contrário do que ela disse, os preços não estavam baratos justamente porque o final de semana estava chegando e, com ele, as festas superpopulosas dos hósteis também, o que explica a inflação.
Resolvi reservar uma noite no Once in Cape Town pra ganhar tempo e pensar no que fazer da vida. Quando amanheceu, o temporal veio – pedi pra esperar passar pra poder sair, mas nem assim ela amoleceu. E foi desse jeito que saí da minha primeira experiência no Couchsurfing: às 9h, de mochilão e cuia nas costas e um peso no peito que não conseguia nomear.
Não quero ser ingrata – foi incrível como ela me recebeu em sua casa e toda a sua disponibilidade, as conversas e trocas que tivemos. Foi uma amizade sincera e quero muito bem a ela. Sei também que cada pessoa tem um jeito de lidar e não posso julgar. Se ela precisava ficar sozinha, ok – mas podia ter me avisado com certa antecedência ou, se foi de supetão mesmo, ter tido a sensibilidade de me dar mais tempo pra me organizar. Agora, vejo que a experiência com ela foi mais pra me calejar do que qualquer outra coisa.
Talvez o remorso tenha batido. Eu já estava no hostel quando A. começou a me mandar contatos de amigos com quem ela tinha falado pra me hospedarem. Falei com três e todos responderam o mesmo: “então, calma… Eu não faço couchsurfing e nunca recebi ninguém. A. disse que você precisava de ajuda mas não o porquê.”
Por sorte, uma dessas pessoas foi o Duli. Em vez de cravar que não poderia me receber, disse que sentia que precisava me ajudar e me recebeu durante o fim de semana.
Foi um presente. Assim que cheguei em seu apartamento, ele me ofereceu chá e conversamos sobre tudo: minha viagem e o projeto, seu trabalho, machismo e as condições do feminino, religião, espiritualidade. Dormi em seu sofá por dois dias. Fomos a mercados de rua, cafés, Kirstenbosch. No domingo, me convidou para participar de seu ritual de reza hindu e foi um dos momentos mais especiais desde que cheguei em Cape Town.
De repente, conectei os pontos. O peso no peito e o nó na garganta depois de sair da casa de A. A lembrança dos refugiados na igreja. O acolhimento inesperado e o alívio momentâneo. A sensação de ser rejeitada, abandonada, de não ter pra onde ir. De não ter uma casa à mão, um espaço seguro para onde correr quando apertou. De não pertencer.
Claro, apesar de compartilhar da mesma base de medos e traumas, são escalas bem diferentes. Para os refugiados, casa é uma nação. Eles foram expulsos dos lares que construíram em um novo país na esperança de ter uma estrutura melhor e agora suas vidas dependem disso. Mas eu sou do mundo, estou de passagem e os lugares por onde passo são temporários. Por isso minha casa fixa é minha mochila, sou eu. Essa noção é difícil de consolidar porque exige que eu fique em paz comigo mesma. A partir do momento em que fazemos o outro de casa, temos que arcar com as incertezas. A situação exige que eu não me debruce totalmente na bondade de ninguém porque pessoas são pessoas – elas podem mudar de ideia e de humor. Podem ter interesses que eu não atenda e que me tornem descartável, portanto.
Que eu seja minha casa, então.
O despejo da A. cutucou outra coisa importante: perdida no meu marasmo, não percebi que já estávamos pra entrar na semana do natal e eu nem tinha planejado minha ida pro próximo país, quanto mais ido atrás do visto de Moçambique. Mas esse perrengue fica pro próximo capítulo…
[…] por Marina Pedroso Share this article FacebookEmail Próximo post Fui expulsa do Couchsurfing Diários de uma Volta ao […]
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AAAAAAAAAH amei a foto no PUFF coisa lindaaaaaa
[…] caminho até lá, decidi que ficaria só mais dois dias em Moçambique. Era a segunda vez que passava por essa experiência de despejo e de novo a sensação de não ter um lar, de não ser bem-vinda e de estar vulnerável batiam na […]