Um domingo moçambicano

Cada dia que passa dessa volta ao mundo entendo que eu não sabia nada sobre viajar de verdade. Não querendo desprezar – eu amo demais turistar pelos lugares, mas passava batido o fato de que o melhor ponto turístico de um lugar talvez seja as pessoas que moram ali.

Na entrada anterior do #DVM contei como fui parar com OV e KK na noitada do mercado central de Tofo e, claro, fiz algo que só uma cerveja me daria coragem pra fazer: vi um grupo de moçambicanas dançando ao som de uma picape, pedi pra colocarem Anitta e dei uma “””aula””” de quadradinho de 8 pra elas.

A prova de que não tô mentindo: eu realmente ensinei alguém a dançar um quadradinho de 8 que nem eu consigo fazer – pelo menos apresentei Anitta às moçambicanas

Foi assim que conheci Nery – com a nádega direita, eu diria. Quando ela e as irmãs descobriram que eu era brasileira, piraram. Isso porque Moçambique consome MUITO conteúdo do Brasil. Logo desembestamos a gastar o português (pra quem não sabe, ambos os países foram colonizados por Portugal). E no meio das risadas, veio Nery com um pedido: “Será que você pode dar um recado pros brasileiros? Diz pra eles que nós não somos feias – eles chegam aqui e falam que somos. Diz também que na África não tem só leão e macaco, tem gente também”. PÁ, caí pra trás.

Pedi pelo amor de jah pra que ela mesma dissesse isso a eles – eu não queria tomar o lugar de fala dela. Ficou marcado então: eu, OV e KK iríamos à casa dela em Inhambane pra gravar. Nery também queria que provássemos um almoço tipicamente moçambicano, o carril de frango com leite de côco e amendoim.

O encontro aconteceu dois dias depois. Nos despedimos do Fatima’s e dirigimos no carro de Ov até Inhambane. De lá, eles me deixariam no ferry que iria até Maxixe, onde eu pegaria uma chapa pra Vilanculos. Perfeito.

Ao chegar, abri a grade de ferro e entrei no terreiro de areia. Contornei a casa desviando dos galhos de laranjeiras que mostravam o caminho até o grande quintal-pomar ao fundo. Uma das estrelas era o pé de moringa, um patrimônio do país que tem sido devolvido ao seu povo aos poucos.

Isso porque a planta sempre pertenceu à sabedoria popular – as raízes têm efeito laxante, as sementes purificam a água, as flores, quando fritas, ficam com sabor de cogumelos e as folhas servem como chá. São diversas propriedades, como o efeito antiinflamatório e o combate à anemia, pressão alta, dificuldades respiratórias e diabetes. Não à toa é chamada de árvore da vida. Mas, uma vez descoberta como um superalimento, a indústria logo se apropriou, como pontua Paulina Chiziane na entrevista que me deu dias depois. Recentemente é que o governo decretou que cada família moçambicana deve ter ao menos um pé em sua propriedade, justamente pra estimular o resgate da planta medicinal na cultura popular.

A roda de uma tarde moçambicana tranquila

E foi a família de Nery que encontrei sentada embaixo de uma das árvores do quintal. Nos cumprimentamos, fizemos festa e as irmãs logo foram preparar drinks. Ficamos todos sentados em uma roda de cadeiras de plástico e esteiras alongadas no chão. Com a mesa onde o almoço seria posto ao centro, Nery me contou que é assim que as famílias moçambicanas passam os domingos: juntos, comendo, jogando baralho e conversa fora.

Aliás, lembra do tal prato típico que Nery queria preparar? Ela devia ter avisado a taurina da sofrência. Pensa num frango tão macio que desmanchava do osso… O carril com leite de coco e amendoim é simplesmente uma receita GÊNIA e agora não posso superar a saudade desse novo amor.

Além do carril, Nery também fez ugali, uma papa africana típica feita com farinha de milho

Embalamos e, quando fomos perceber, o sol já ia embora. Corremos pra gravar nossa conversa e acabamos combinando de acampar no quintal para ir embora na manhã seguinte, algo que não estava nos nossos planos.

KK ensinou a mãe de Nery a fotografar de sua analógica

Quem puder, dê uma lida na mensagem de Nery – é importante escutarmos não só o outro lado de uma história, mas principalmente outras vozes. As mágoas que ela carrega são, na verdade, tabus que todos nós carregamos, mesmo que inconscientemente.


Pela vermelhidão dá pra entender o calor que eu tava passando de capulana na frente do fogão de carvão – que, aliás, queimou meu brigadeiro

O dia terminou comigo fazendo brigadeiro no fogão de carvão vestida com uma capulana, tecido tradicional das moçambicanas que ganhei de Nery, e a trança que uma das irmãs fez pra eu não parecer uma “branca azeda”.

Realmente, o melhor ponto turístico podem bem ser as pessoas e não as coisas que você visita.

Marina Pedroso

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