A cigana se despede

Acordei ao som cigano de metais tilintando – o mesmo das tornozeleiras feitas por Masais com miçangas e medalhinhas ao andar. Era noite no quarto em que dormia em Mombasa mas, quando olhei para a parede, vi uma lagartixa desproporcional à realidade. Do tamanho de um gato, sua pele era azul fosforescente e tinha tatuagens em arabesco verde neon. Em um instante, desceu correndo e veio parar em cima do edredom que cobria meus pés na cama. Ficamos nos olhando por um tempo… então se foi e eu despertei.

Fiquei dias tentando desvendar esse sonho que me veio em um sábado. Sabia que era uma presença, mas não entendia o significado daquilo tudo…


Nos conhecemos em Arusha no dia em que eu deveria partir para Nairobi. Em uma conversa rápida durante o café da manhã no hostel, comentei minha frustração em não ter me conectado tanto com mulheres na Tanzânia.

“Olha, eu vou visitar uma tribo de viúvas Masai Mara no fim da semana. Mas em vez de ir com um guia de turismo, vou com uma missionária entregar alimentos – pelo menos sei que meu dinheiro vai pra elas.”

Congelei meu gole de café no meio e olhei pra Rachel: “Posso ir também?” E então eu fiquei.

No dia de sua partida pra Rwanda, desencontramos. Saí do quarto, perguntei por ela. Jazz, nossa amiga chinesa, me olhou com uma cara surpresa. “Saiu cinco minutos atrás! Ficou com dó de te acordar…”

Sempre vou agradecer infinito por ela ter calçado suas botas, colocado o chapéu de safari, olhado pra minha cara descabelada de sono e dito “vamos, vou te levar até o ônibus. Rachel deve estar na rodoviária ainda!”

Rachel

O êxtase que ela ficou quando levantou a cabeça do celular e nos viu abrindo caminho no corredor povoado do ônibus ficou tatuado na memória. Estava respondendo a uma mensagem minha, aliás, mas como dizem por aí, ao vivo é bem melhor. Nos abraçamos forte, combinamos que tentaríamos seguir juntas pra Etiópia e Sudão a partir do Quênia.

E foi quase: passamos um dia na mesma cidade, em Kisumu, mas nos desencontramos de novo. Ela não apareceu na entrega das máquinas de costura e à noite eu já estava em um ônibus rumo a Nairobi. No dia seguinte, quarta-feira, me escreveu dizendo que tinha acordado com febre e dormido o dia inteiro, mas já estava melhor. Prometeu que em alguns dias me encontraria em Mombasa para quarentenarmos juntas. Queria ver o mar logo – mas nenhuma de nós sequer imaginou que ela não chegaria lá.

Três dias depois em que nos falamos, num sábado, partiu pra outra viagem – uma muito mais longa. Dessa vez não levou seu mochilão… deixou tudo aqui. No entanto, eu só viria saber da notícia no domingo, o que partiu meu coração em mais pedaços ainda. Senti meu sangue evaporar, as paredes e a garganta se fecharem contra mim. Meu corpo inteiro tremia. Me recusava a acreditar nos comentários de sua última foto no Instagram.


Rompi a orientação da OMS de novo por desorientação minha. Não sabia o que fazer. Como lidar com a culpa, com esse jeito cretino de ser que a vida tem às vezes. Então seis dias depois de me confinar no apartamento, desci pelo elevador, caminhei pela viela estreita, cruzei uma nuvem de meninos sibilando “corona” no meu rastro e afundei os pés na areia de Mombasa. Não queria que meu primeiro encontro com aquele azul fosse daquele jeito, mas precisava levar Rachel até o mar.

Meti os pés na água e desaguei. Ainda conseguia ouvir sua voz cantada do sul, sua risada rouca e cheia. Como é que podia não estar mais aqui? Olhando pras ondas, a mente deu um clique. A lagartixa era ela. Aquela com quem aprendi sobre liberdade, força e vida, com quem compartilhei o andar de cigana nas tornozeleiras Masai e o sonho de viajar o mundo tinha, afinal, encontrado seu caminho até Mombasa naquele sábado para se despedir. Mergulhada na dor, mal imaginava que sua partida inauguraria a saga de mortes que eu viveria nos próximos meses…

Marina Pedroso

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