“Isso é Johannesburgo! Te parece perigoso?”, gritou Ov. Havíamos nos conhecido no ano novo de Tofo e, entre uma mergulhada e outra no mar de Moçambique, ele me contou da sua frustração: o preconceito contra sua cidade, o medo que as pessoas tinham de ir e a opinião alheia de que não havia nada para ver lá – e foram justamente frases como “dois dias são mais que suficientes pra ficar em Joburg” e “se eu fosse você nem perderia meu tempo indo lá – é violento e não tem nada demais” que eu ouvi toda vez que alguém me perguntava se eu ia passar por lá. “Se você soubesse quantas pessoas brilhantes tem lá”, continuou Ov depois de emergir da onda. “Uma geração inteira que quer se expressar e contribuir para um mundo melhor.”
Não sei se foi a porrada que levei da onda ou se foram os céus, mas me deu um clique e tomei uma decisão: Antes de seguir pra Tanzânia, dei ré de Moçambique pra África do Sul justamente porque senti que não tinha feito justiça ao país – afinal, fiquei tempo demais em Cape Town e não dá pra negar que a cidade é uma vitrine pra gringo ver. Claro, precisa sim ficar vigilante e tomar cuidado – Joburg tem altos índices de violência e a África do Sul é o primeiro colocado no ranking mundial de países não seguros para mulheres viajantes segundo o Woman’s Danger Index de 2019. Mas como bem disse Nery: tem gente que vive aqui. Gente incrível, aliás. Eu decidi voltar pra Joburg justamente porque fiz amigos pra vida no Tofo que moram na cidade e, depois de me levarem em um tour ~like a local, confirmaram minha suspeita de que tem um lado bom aqui, sim.⠀⠀⠀⠀⠀
Não fui no Apartheid Museum, mas fui no Neighborgoods Market, mercado de comida de rua e hub de criadores, um bar onde os xófens dão um baile em qualquer semana de moda e uma festa no meio de uma township (a.k.a favela) onde vivi minha parcela de fama – não pude nem fazer xixi por causa da fila de gente dentro do banheiro querendo tirar foto por eu ser uma mulungo.
Ainda nessa festa-relâmpago, em vez de me fechar no meu ego e querer eu mesma fotografar tudo, deixei uma artista de Joburg se tornar meus olhos e meus dedos na câmera – através dela cheguei ainda mais perto do que eu queria testemunhar sem filtros e entendi que não vou fazer tudo sozinha, afinal.
Em vez de me isolar em um quarto de hotel, convivi com uma família sul-africana, aprendi receitas e cantei um mantra pra 50 pessoas durante uma cerimônia feita no ashram construído no quintal – todo domingo, recebem gente de todas as religiões e cada um pode recitar o que quiser, do alcorão até um canto hindu. Em vez de fugir da cidade, fiquei com vontade de ficar – foi a despedida mais dolorida até agora.
Que loucura que você foi, Jozi – ainda bem que eu voltei. Porque acima de qualquer um dos superlativos mais do que merecidos a serem citados aqui, senti tua vontade de liberdade. Como um dos epicentros da violência e da segregação do Apartheid, não estranho em nada o fato de ter descoberto sobre a Geração Livre em um final de semana que passei em Johannesburgo (e não em Cape Town, onde fiquei três semanas). Nomeia-se assim aqueles nascidos em 1994, ano de estreias significativas para a África do Sul: além de ter a primeira geração nascendo em liberdade, foi a primeira vez que o povo negro pode votar e a primeira vez que o presidente, também ineditamente negro, foi eleito democraticamente.
A força do quanto significa essa liberdade apareceu em outro momento de Joburg, quando localizei da varanda do The Neighborgood’s Market um grafite estupendo de Nelson Mandela com a frase “The Purple Shall Govern”. Meus olhos brilharam quando vi porque soube imediatamente que era uma referência ao Purple Rain Protest, dia histórico e bastante emblemático no processo de libertação da África do Sul.
Não, não tem nada a ver com a música do Prince (que, aliás, foi feita depois) – estou falando de um protesto anti-Apartheid que aconteceu em 1989 na Green Market Square, praça que concentrava prédios políticos da Cidade do Cabo. Como meio de carimbar os presentes e identificá-los depois para prisão, a polícia usava um jato de tinta roxa contra os manifestantes. Um deles, porém, mudou o rumo quando se apoderou do canhão para tentar tirar a mira da população – sem querer, pintou quatro andares do QG do Partido Nacional, vigente no poder e os próprios mandantes do Apartheid. Pronto: Nos dias seguintes surgiram graffitis pela cidade com o slogan “The Purple People Shall Govern”… e, claro, virou hino da rebelião. Eu AMO esse causo!
Introduções feitas, apresento-lhes então algumas outras faces da cidade: três joburgers que se expressam pela arte, falando sobre espiritualidade e futuro e estourando nos lookinhos – sério, me senti uma hippie dora aventureira doida perto da galera daqui. Antes de passar a palavra a eles, devo confessar: eu ri com a cumplicidade que o universo me mostrava no momento em que cada um deles me disse seu nome.
Bless, o mago cientista
Se você pensa que ciência e arte não se misturam, think twice: esse cara com estilo peculiar está prestes a romper com o paradigma.
Formado em engenharia, Bless tem mesmo uma mente tecnológica capaz de hackear instituições. “Muitos pensam que a ciência é puramente racional, mas as grandes invenções precisaram de criatividade e partiram da conexção com o emocional. Da mesma forma, a vida é arte e estamos aqui para ter experiências científicas. É uma linha tênue entre ciência e arte”, contou. E ele coloca isso em prática nas placas-mães, chips e artigos industriais que usa para recriar objetos estéticos do dia a dia como óculos e colares. Sua produção tem um propósito e ele se chama Architectural Craft and Touch Science. Trata-se de um museu que vem construindo com ajuda de sua comunidade em Joburg pra ter um espaço que inspire os jovens a criarem e pensarem na fusão da ciência com arte – a ideia é que o lugar ofereça oficinas e cursos, bem como um ambiente seguro para pesquisas e experiências. “A obra já completou o segundo ano de aniversário e temos construído devagar mesmo por falta de recursos. Toda a venda dos objetos que eu crio vai para o projeto“, conta.
A Liberdade é mulher
Apaixonei na Nonkululeko Twala não só pelo seu nome – que, adivinhem só… significa Liberdade por ter nascido em 1994 – como também pelo compromisso que ela tem com esse valor que tanto prezo.
Geminiana das artes e designer, faz suas próprias roupas e tem sua marca, a Nkulie Twala. “Eu já me preocupei muito com dinheiro, mas um amigo me disse algo que mudou tudo: trabalhe na sua verdade e o dinheiro vem. Pra mim, de todas as formas de arte, a moda é a mais acessível e poder criar algo para marcar momentos nas vidas das pessoas não tem preço – eu literalmente visto a minha verdade e expressar ao mundo a minha essência é o que me torna livre. O dinheiro ainda não veio como eu gostaria, mas confio na minha jornada e que um dia vou ficar livre dele também.”
“E por que você quer o dinheiro?”, perguntei. “Quero ter o suficiente para um dia viajar o mundo como você. É um atestado de liberdade, de ruptura com a matrix de que o dinheiro faz parte. Fora o que posso incorporar na minha arte: desenhar uma coleção com referências da China não significa que o designer esteve lá – a experiência muda todo o significado da peça. Ao mesmo tempo, é inevitável que se torne algo reciclado. Eu acredito em vidas paralelas e por isso nada na moda é novo, por isso há tantas referências ao passado. Nos identificamos com ideias que já vivemos, assim como com lugares. Se durante a minha viagem eu me encantar pela China e quiser estampar peças para homenageá-la, vai ser por causa da minha conexão com o lugar e das memórias que eu criar, por causa da certeza de estar exatamente onde deveria estar”, finaliza.
Viva pelas suas lentes
The Neighborgoods Market não só é incrível pelas comidas mil, mas pelas pessoas atrás das bancadas também. E isso reflete muito sobre a questão do estigma de Johannesburgo porque é disso que a cidade se trata: a liberdade que permeia a história do país é apropriada e ressignificada pelas novas gerações na maneira de trabalhar, se vestir, se expressar e de criar. Mas não são só flores – mesmo que borbulhe culturalmente, Jozi também é uma das maiores herdeiras sul-africanas da desigualdade social gerada nos tempos coloniais e do Apartheid. Os Baby Boomers, portanto, tiveram o desafio de sair e recomeçar em um sistema pós-segregacionista, proporcionando aos filhos o acesso à educação e à oportunidades no mercado de trabalho que eles próprios não tiveram. Esses mesmos filhos, no entanto, sentem que precisam mudar a forma de pensar – não é só estudar e trabalhar! Os Millennials de Johannesburgo também precisam se libertar da escravidão ao dinheiro, tornarem-se donos de sua propriedade intelectual e mestres de suas vidas. Buscam um próximo patamar na escala da independência e da liberdade.
Só que mergulhados em um contexto sul-africano de uma altíssima taxa de desemprego a 29%, também estamos falando de uma geração que (sobre)vive quebrada. Que, mesmo com acesso à educação, não consegue ser absorvida no mercado de trabalho pela falta de vagas e de experiência. A função multitasking tão natural aos Millennials ganha escala pra eles que precisam se virar nos trinta. Trabalhando em um bico aqui e ali para alimentar o sonho de ser uma designer, um fotógrafo… como é o caso de Viva Sage, brilhante nas imagens que produz e que equilibra seus trabalhos autorais com as vendas no The Neighborgoods Market. “Tem tanta gente criativa aqui disposta a dividir o espaço e compartilhar pra evoluir juntos. Quem diz que um ou dois dias é suficiente pra conhecer a cidade não sabe do que tá falando”, soltou no meio da conversa.
É, Viva, não sabem mesmo.
[…] January 23, 2020Add comment Escrito por Marina Pedroso Share this article FacebookEmail Próximo post O estigma de Joburg […]