De todos os anúncios feitos pelo presidente Uhuru, o último, feito no 30 de setembro, me pegou em cheio: era o fim da anistia de vistos para estrangeiros que estivessem no Quênia durante a pandemia. Todos com permanência maior do que seis meses deveriam aplicar pela residência ou partir em 14 dias. Eu tinha duas semanas para descobrir quais países estavam abertos para turistas e qual seria meu próximo destino, correr atrás de visto, passagens aéreas (que seguiam absurdamente caras), teste do Covid-19… fora as despedidas.
Havia a possibilidade de pedir extensão de visto, mas o máximo que estavam liberando era o período de outras duas semanas. Lá no fundo, eu sabia que agora era pra valer. Teria de partir e não haveria quase nada de tempo pra me planejar.
O terror se instalou em mim.
contagem regressiva no quênia
Verdade seja dita, os aeroportos do Quênia já estavam reabertos desde o início de agosto. A notícia foi dada pelo governo dois dias antes de eu partir da casa da minha família punjabi em Nairóbi, mas as passagens aéreas estavam totalmente fora do meu orçamento na época e precisava entender o que fazer. Confesso que também não me sentia pronta pra partir. Estava no auge de alguns processos internos, sobrecarregada emocionalmente e precisava me dedicar à minha cura. Afinal, como uma borboleta pode voar se ainda está presa dentro de um casulo? Não era momento de viajar pra fora, mas pra dentro… e pra isso eu precisava da minha caverna. Por isso, em vez de ir para outro país, decidi retornar a Mombasa.
Dali foram outros dois meses e muito aconteceu: voluntariei com o grupo Pamoja e levamos 8 toneladas de comida a Lamu, o arquipélago cercado por terroristas do grupo Al-Shabaab; fiz minha primeira aula de kite-surf; viajei por quase toda a costa, nadei com algas bioluminescentes, descobri um cânion que muitos quenianos nunca ouviram falar; entrevistei mulheres, fiz amizades incríveis e não só conheci uma artista inspiradora de 13 anos lutando pra voltar às aulas, como fiz a ponte para uma doação que quitou suas dívidas e a de seu irmão com a escola. E se eu descobri meu coração da leoa no Kilimanjaro, foi nesse meio-tempo que ela passou a se revelar ainda mais pra mim: dei um salto inimaginável na relação comigo mesma… ao ponto de fazer meu próprio funeral.
Materializei as mortes do ego que vinham acontecendo ao longo dos meses. Me despedi um pouco mais de crenças, hábitos, pesos e padrões que não condiziam mais com quem eu precisava me tornar para seguir a Jornada. Aliás, ao liberar tralhas dessa e de outras vidas abri ainda mais espaço para receber essa nova versão minha.
Então não me espantei quando o agente da imigração calculou errado e confundiu minhas datas – em vez de duas semanas, ele acabou me dando um mês a mais de estadia. Eu soube que não tinha como ser de outra maneira no momento em que o seguinte pensamento me invadiu como um raio: quando chegasse meu último dia de visto no Quênia eu estaria perto de completar 8 a 9 meses de permanência no país – o mesmo tempo que uma gestação. Fazia sentido que tudo acontecesse pra eu chegar nesse marco. Afinal, não estava eu parindo uma nova mulher?
Era esse o sentido do ventre da baleia na Jornada da Heroína: passar pelo ciclo de vida-morte-vida em uma camada mais profunda do ser. Romper com as estruturas obsoletas e criar novas. Deixar morrer a versão antiga e renascer outra mais apta para seguir à próxima etapa da viagem.
Portanto, não foi coincidência o fato de que, segundo a Astrocartografia, a energia predominante me influenciando em Mombasa fosse o de Plutão – o planeta que, assim como Shiva, rege a destruição e a reconstrução; assim como Hades, transita no submundo, fala com as sombras e os venenos – no Meio do Céu, área do mapa astral que fala sobre o futuro, o destino e um pouco da missão dessa existência.
Também não foi coincidência eu ter apelidado Mombasa de caverna. Quando o fiz, mal sabia (quer dizer, o subconsciente devia saber) se tratar de um arquétipo que representa o útero, um lugar de origem, iniciação e (re)nascimento. Jesus nasceu e foi sepultado em uma gruta, seu portal de passagem entre o divino e a Terra. Platão escolheu a caverna para ilustrar onde vivem as ilusões criadas pelas sombras. Se a heroína tiver as armas mágicas certas, é lá que pode matar seus dragões e sair com tesouros.
E foi o que fiz ao mergulhar no meu submundo. Mapeei e lidei com meus medos e crenças limitantes, alguns monstros que escondia no obscuro da psiqué. E porque reconheci minhas sombras, pude ganhar consciência da minha luz. Assim a leoa foi dando as caras: fui me sentindo cada vez mais solar, completa, potente.
Sim, era tempo de sair da caverna: a leoa estava faminta do mundo outra vez.
O único problema é que essa leoa é taurina capricorniana. Então o fato de ter que tomar decisões gigantes em tão pouco tempo me levou à sensação de falta de controle e de planejamento, que por sua vez gerou um pane. Revivi o caos da minha partida do Brasil em que tive apenas três semanas para organizar e me preparar na prática para um mochilão de volta ao mundo – eu tinha o mesmo período para resolver minha saída de Mombasa e eu ainda nem sabia pra qual país iria em seguida.
confusão: Pra onde ir em tempos de pandemia?
Mais uma vez fui testada a confiar no universo. A princípio, tinha decidido ir pro Egito, um dos poucos países que estavam recebendo turistas na pandemia. Só que, quando fui aplicar ao e-visa, descobri que não estavam emitindo para brasileiros. Lembrei de ter lido sobre o visa on-arrival em alguns blogs no ano anterior, mas quando fui checar novamente vários sites oficiais não incluíam Brasil na lista. Por fim, ao contatar a embaixada do Egito em Nairobi, fui informada que o visto era emitido apenas para quenianos ou residentes. Então como raios eu iria?
Pânico. Àquela altura, restavam duas semanas pro dia final. Dei uma choradinha de ansiedade e comecei a buscar por passagens no Skyscanner para ver se brotava uma luz. Foi assim que descobri que, se eu fosse pra Etiópia e de lá fosse ao Egito, sairia bem mais barato do que se fosse direto à terra dos faraós. Lembrei que a antiga Abissínia era um dos países que eu fazia questão de incluir no roteiro da volta ao mundo… por conta da pandemia e do pequeno gap no Quênia, tinha descartado a ideia achando que teria que recalcular tudo. Na verdade, não só era a temporada ideal para ir (de novembro a janeiro), como existia o e-visa para brasileiros.
Momentos depois de descobrir isso tudo, meu contato na embaixada brasileira me confirmou que o Egito estava emitindo visa on-arrival para brasileiros, sim. Só que agora a indecisão estava instalada: se toda aquela confusão não tivesse acontecido, não teria reconsiderado a Etiópia. Será que não foi por acaso?
Carreguei a dúvida pro bar e, mais uma vez, a mágica aconteceu. Fiz amizade com F*, uma queniana que trabalhava para a Organização Mundial da Saúde em outro país. Adivinhem aonde? Na Etiópia! Como se não bastasse, ela me convidou a ficar em sua casa, dizendo que me ajudaria. Tá, entendi, universo…
No dia seguinte, apliquei ao visto e horas depois já havia sido aprovada. Encontrei uma passagem por 160 dólares de Mombasa-Nairóbi-Addis Ababa, metade do valor que custaria se eu estivesse saindo de Nairobi, o que não fazia o menor sentido. Na verdade, fazia: era esse o caminho. As portas estavam abertas.
Os últimos dias no Quênia
Meus últimos dias no Quênia foram pesados. Também nesse sentido revivi a partida do Brasil. Me sentia sobrecarregada emocionalmente, lidando com a ansiedade e os medos de trocar um mundo familiar por um desconhecido de novo. Afinal, aquele país não só tinha se tornado um refúgio no meio da pandemia e um abrigo pra minha transformação, como também tinha virado um lar com direito a família e rotina. Além de ser desafiador, é quando você está prestes a deixar uma zona de conforto que a Impostora ataca com tudo. A insegurança e a sensação de não estar preparada o suficiente voltaram com força.
Fora isso, as questões práticas. Não ajudou muito os nervos ter que fazer o teste de Covid-19 dois dias antes da viagem para chegar no novo país com o certificado no prazo de 72 horas que pedem – um mundo novo e pandêmico pedia procedimentos novos para transitar por ele e ninguém tinha muita experiência ou informação se era por aqui ou ali, se daria certo ou não. Eu precisava finalizar algumas entrevistas com mulheres e fechar ciclos. Foi tudo tão corrido que só consegui arrumar o mochilão no dia da partida.
Poderia ser um déjavu da partida do Brasil não fosse um detalhe: não tinha como ser a mesma coisa porque eu já não era a mesma menina que cruzou o portão de Guarulhos. Onze meses, quatro países, inúmeras experiências, um Kilimanjaro, voluntariados, diversas mortes e uma gestação haviam se passado. Eu estava com medo da mudança, sim. Mas sabe como é… a jornada tinha que continuar e meu prazo de validade no Quênia já estava estourado. Se você não toma suas decisões, a vida toma por você. Eu já tinha enrolado o suficiente e recebi um ultimato: ou vai, ou vai.
E fui.
[…] um bote salva-vidas e que me acolheu em meio a tanta angústia pandêmica porque eu entendi que minha hora de partir também estava chegando – o início do fim do ciclo no Quênia foi sair pela porta daquela que foi minha principal […]