Vida de mochileira é assim: no espaço de uma hora tudo pode mudar e você precisar arrumar o mochilão, fechar um ciclo e mudar de casa em 10 minutos. Um dos exercícios desse intensivão de desapego aconteceu quando Kelvin avisou a mim e Selva que precisaríamos desocupar o apartamento para que ele recebesse hóspedes naquela tarde. Ele já havia arranjado tudo: iríamos ficar com sua vizinha debaixo, Charlotte – ou Ciiku (se pronuncia ‘Chicô’), seu nome na língua de sua tribo, os Kikuyo.
Foi por ela que eu descobri sobre o Pamoja, um grupo de amigos quenianos que resolveu fundar a iniciativa para ajudar comunidades locais com a captação de doações e a distribuição de comida, roupas e produtos de higiene pessoal. Com a chegada do COVID-19 no país, fizeram algumas ações direcionadas a vilarejos mais distantes – há muitas organizações ajudando na causa, mas a grande maioria atua em regiões próximas aos grandes centros, como Nairóbi e Mombasa, e muitos ficam desatendidos.
Lamu é uma dessas terras tão tão distantes, mas não é o único fator que dificulta a chegada de recursos: nos últimos anos, o arquipélago tem estado no centro de um conflito entre Somália e Quênia protagonizado pelo grupo Al-Shabaab, que começou em 1998 e se intensificou a partir de 2014. Com a implantação de minas nas estradas que levam até lá, os próprios quenianos sabem do risco de ir por terra. Visitar a ilha, então, só se for de avião – inviável para quem conta com doações e uma operação que visa levar quase oito toneladas de alimentos.
No entanto, é uma das regiões mais afetadas. A série de ataques de homens-bomba, tiroteios e sequestros de muzungos (homens brancos, em Swahili) cortou o turismo em mais de 70%, principalmente após o caso da francesa Marie Didieu, abduzida e morta pelos somalis em 2011. A crise, portanto, começou muito antes da pandemia, já que é a principal atividade econômica para os pescadores, guias e artesãs das ilhas.
Pamoja teria que ir por terra e mar… mas pelas condições mencionadas é que o grupo, unindo-se ao Mombasa Lenses, comunidade de fotógrafos locais, escolheu Lamu e a área de Tana como destino de mais uma de suas ações.
E a jornada começou bem antes. Para montar as sacolas que iriam para 350 famílias foi necessário um mutirão de quatro dias para empacotar: afinal, cada uma conteria 5kg de farinha de trigo e de maisena, 2kg de arroz e de açúcar, 3kg de feijão, 1L de óleo, sal, chá, biscoitos, sabão, absorventes, rede de mosquito, roupas… Em um dos que participei, percebi a roda de mulheres formando uma linha de montagem intuitiva. Cada uma imersa em sua função, todas com as mãos ocupadas. Era o feminino em ação, ativando seu dom para nutrir, acolher, cuidar não só aqueles de sua família, mas também de outras comunidades e tribos.
Também digno de nota: devo dizer que empacotar quase oito toneladas de comida foi um trabalho braçal daqueles – sendo que eu ajudei em apenas uma parte –, mas que nem por um momento cansou. E eu nem contava que iria na viagem. Naquele momento, não podia arcar com o custo por pessoa para cobrir hospedagem, combustível e refeições. Na véspera da partida, porém, recebi uma boa notícia: um anjo quis me “patrocinar”. E foi assim que, no dia 3 de setembro de 2020, uma van e dois carros saíram de Mombasa com destino ao norte da costa – e eu estava a bordo.
A ODISSEIA ATÉ LAMU
A viagem foi dividida em partes. No primeiro dia, a ida até Malindi e a pernoite. No segundo, a esticada de 5h até o porto em Mokowe, seguido por 2h de barco até a ilha de Mokokoni, onde entregaríamos a primeira leva de 175 sacolas para famílias de dois vilarejos. Acamparíamos, então, em Kiwayu, ilha vizinha onde na manhã seguinte faríamos a segunda parte da entrega com outras 175 sacolas. Partiríamos, por fim, para um hotel em Shela, norte da ilha central de Lamu e, no último dia, depois de visitar Lamu town rapidamente, voltaríamos numa direta só para Mombasa.
A ida até Malindi foi tranquila e sentar à janela das estradas quenianas foi uma experiência por si só – passamos por pântanos com vitórias-régias florindo, fazendas de plantações, vilarejos com pequenas casas de barro e argila ou ocas de palha, duas florestas… e até avistamos hipopótamos da ponte. Mulheres cobertas por véus e crianças nos abordavam pelo vidro entreaberto a cada parada ou lombada para vender peixes secos, castanhas, salgadinhos e mokopa, um doce típico da cultura swahili que é puro açúcar. Entulhos de lixo se fundiam à mesma terra que abrigavam baobás, coqueiros.
Já a esticada até o porto contou com um café da manhã swahili em uma casa local e algumas paradas policiais. Quando chegamos ao último, os militares nos barraram – dali em diante, estávamos em território do Al-Shabaab e era preciso ter escolta para continuar já que havia duas muzungos no carro… ou melhor, “iscas” para começar um conflito que poderia chegar às notícias internacionais, tudo que o governo queniano não quer no momento. No entanto, ter uma escolta nos acompanhando atrairia ainda mais atenção, como setas neon apontando para a van. Depois de quarenta minutos de treta, fomos liberados para seguir viagem.
Chegamos a Mokokoni com atraso. De qualquer forma, foi como se tivesse passado horas em outra realidade: nunca vou esquecer da multidão de pescadores e crianças que nos esperava às margens da areia, das mulheres que nos serviram atum e um ensopado inacreditável de batatas no molho de tomate como almoço.
Nesse meio-tempo, fiz amizade com Maryam, que me levou para visitar sua casa e conhecer o trabalho de sua mãe: além de vender peixe seco e castanhas, recolhia garrafas plásticas do mar e transformava em arte – peças de roupa, cortinas…
Quando voltei, centenas de pessoas e cores rodeavam em curiosidade os voluntários que corriam para organizar as sacolas em fileiras com acessórios avulsos (bolachas, redes de mosquito, pacotes de roupas, óleo). Me juntei a eles e vi o sol caindo enquanto beijava as nuvens em um tom meio alaranjado, meio rosa. Quando começamos a chamar a lista com os nomes das famílias, já era noite – assisti a tudo de mãos dadas com Maryam enquanto ela me confidenciava histórias de corações partidos, seus olhos com uma camada de melancolia brilhando na escuridão.
“No fim, não interessa a religião, a cor da pele ou a tribo… Somos todos humanos. Somos pessoas ajudando pessoas. É disso que o mundo precisa“
Comemorei quando seu nome foi chamado, mas o desespero permeava o ar – ainda tínhamos que pegar o barco para Kiwayu, a ilha que iríamos acampar e entregar doações na manhã seguinte.
Mal acreditei no que vi assim que entramos na escuridão do mar: um céu pintado com a via láctea e suas estrelas como há muito tempo não via. Já tinha explodido dentro de mim ao ver uma cadente, mas quando baixei o olhar pra água, vi um vagalume pulando com a onda formada pelo barco. E outro. Outro… até perceber que eram algas bioluminiscentes! Gritava, ria, chamava os outros para olharem também. Ninguém entendeu que eu estava vendo mágica em tudo… nessa vida, na minha existência, em toda a dor que me trouxe até aqui. E isso porque a noite não tinha terminado…
Com o corpo moído, encontrei de novo uma velha amiga: o banho de baldinho que eu havia conhecido tão bem durante o mês que viajei por Moçambique. Eu poderia me ater ao choque da água gelada escorrendo pelo corpo, mas ai, essa gente de cidade grande! Se deslumbra ao menor sinal de tomar banho a céu aberto, fitando a lua cheia…
No jantar – mais ensopado de atum –, soube que o vilarejo havia preparado uma noite de entretenimento para os convidados. Em outras palavras, uma festa. Confesso que estava sem energia e que fui pela curiosidade. A mesma lua guiou meus passos entre as vias de terra e cabanas de palha. Depois, segui o som dos batuques que logo descobri saírem de tapas contra galões de plástico, entoando o ritmo dos corpos dançantes no centro de uma roda apinhada de gente, gritos e palmas.
Então caiu a ficha do que eu estava realmente vivendo ali. Quais as chances? Uma garota que parte do Brasil com uma mochila nas costas, sem fazer a mínima ideia que seria pega por uma pandemia e que, durante sua estada prolongada no Quênia, iria parar em uma ilha no meio do oceano índico, a 20 minutos de barco da Somália, a mesma de onde uma britânica foi sequestrada pelo Al-Shabaab. Mesmo assim estava ali, dançando noite adentro com adolescentes muçulmanas que riam a cada movimento do meu quadril duro.
Aliás, foi enquanto buscava um lugar em torno da roda de Msondo que ela sorriu pra mim. Déjavu: seu nome era Maryam. Também ficou de mãos dadas comigo, mas seus olhos de 16 anos brilhavam de ansiedade – ainda não tinha conhecido os homens. O zelo em torno da castidade do feminino era tanto que, em algumas vilas da região, mulheres só podiam dançar quando as luzes estivessem apagadas.
Por isso mesmo a mãe de Maryam a proibia de dançar o Msondo, dança que mais parecia uma troca de convites entre homens e mulheres ao meio do círculo, frente às centenas de olhos do vilarejo – os mesmos que me seguiam com curiosidade desde que cheguei à festa. Por isso mesmo, meu coração tamborilava junto com os batuques e o estômago gelava enquanto construía a coragem do impulso: os segundos antes de pular do alto de 5m pra dentro de um lago tinham a mesma intensidade daqueles que antecediam meu mergulho ao centro da roda. Era pedir para ser duplamente o centro das atenções.
Enfim saltamos – num frenesi atravessamos a roda e voltamos, provocando a gritaria esperada com uma muzungo virando notícia na tradição.
*
No dia seguinte, distribuímos doces para as crianças e organizamos as outras 175 sacolas para as famílias recolherem. Maryam foi me encontrar: queria me apresentar para sua família. Foi como conheci sua mãe e soube que tinha parido e criado 18 filhos. Suas irmãs quiseram tirar fotos e me encheram de beijos e presentes – uma bolsa de palha, pulseiras e colares feitos com a borracha de chinelos descartados que o mar trazia e conchas enormes.
Depois de terminar a distribuição, fomos dar um mergulho rápido e fiquei impressionada com a vastidão de uma praia desértica e de águas turquesas escondida por trás das dunas. Nos despedimos de Kiwayu, aquele povo que nos recebeu com festa antes mesmo de ganhar qualquer coisa.
A próxima parada foi Shela, bairro ao norte de Lamu, onde dormiríamos no hotel, e logo me encantei com aquela ilha que dizem ser um dos lugares mais autênticos no Quênia – de fato, merece um post à parte. Especialmente porque no dia seguinte, o último da viagem, conseguimos turistar por algumas horas pela Lamu Old Town, patrimônio cultural da UNESCO, antes de voltarmos ao porto de Mokowe e depois direto a Mombasa.
Meus amigos, que odisseia: percorremos florestas, vilarejos, paradas policiais, mar. Acampamos, dançamos, suamos sob o sol – tudo para levar um alívio de três semanas a 350 famílias. Por que tanta dedicação? “Não somos ricos, mas somos abençoados. É mais do que justo que compartilhemos com quem não tem tanto”, me contou Leila Awale, cabeça do Pamoja.
Monika Solanki, chairwoman do grupo e cuja casa serviu de QG para a operação, completou: “Todas as vezes em que terminamos de empacotar e que precisávamos levar até o caminhão no fim da rua, pessoas apareciam do nada para ajudar – eram enviados de Deus. Nesse momento, não importam nossos problemas… tudo se torna pequeno quando percebemos que Ele está aqui. E a maior prova de sua presença é a existência desse grupo formado por hindus, muçulmanos, cristãos que não só trabalham juntos, mas que também mobilizaram suas comunidades para doar à mesma causa.
No fim, não interessa a religião, a cor da pele ou a tribo… Somos todos humanos. Somos pessoas ajudando pessoas. É disso que o mundo precisa”.
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