As viúvas Masai e o feminino mutilado

Tinha ficado incomodada com a ideia de ir embora da Tanzânia sem ter me conectado com ao menos uma mulher – eram todas extremamente fechadas em Zanzibar, onde a maioria religiosa é muçulmana, e depois eu já tinha embalado no safári e no Kilimanjaro. Quando Rachel me falou que iria visitar viúvas Masai com Ironi Ribeiro, brasileira com projetos na região de Makuyuni, me senti como uma criança de olhinhos brilhantes: “meu deus, posso ir junto???”

O cerne da visita consistia em comprar mantimentos, roupas e brinquedos para distribuir entre mulheres e crianças – muito melhor do que ir pagando a uma agência, já que a maior parte (ou nada) do dinheiro não chega às mãos das comunidades.

Uma semana depois, esperávamos ansiosas as três na sala do hostel: eu, Rachel e Jazz, nossa amiga chinesa de viagem que também quis ir junto. Ironi tinha nos falado sobre um certo dresscode – “evitem ao máximo parecerem turistas”, foi a instrução. Talvez por isso ela tenha arregalado os olhos quando viu Jazz vestida com um conjunto cor areia de calça cargo, camisa de sarja, bucket hat e lenço no pescoço.

Ali estávamos nós no banco de trás do jipe, vendo vilarejos de beira de estrada passar pela janela e ouvindo Ironi explicar sobre o contexto dessas mulheres e de seus projetos. Eu a enchia de perguntas e me calava com as respostas.

O feminino Masai em cisão

As meninas e mulheres da tribo Masai são submetidas a uma série de condições culturais repressivas e aterrorizantes, pra dizer o mínimo. Ironicamente, giram em torno do tabu acerca da sexualidade feminina e de sua apropriação pelos homens.

Os pilares da repressão feminina são vários, a começar pela instituição do casamento, que tem mais de uma faceta. Primeiro, há uma enorme prática do matrimônio precoce, com meninas de 17 anos se unindo a homens de até 90. Como o gado não é tratado como comida, mas como dinheiro, é a moeda de troca para arranjar um casamento – basta o homem negociar vacas com a família para comprar uma mulher. Segundo, a virgindade feminina é uma condição sine qua non para a união acontecer.

Mais uma ironia é que, apesar disso, outras tradições culturais não só contradizem a instituição do casamento como desrespeitam a premissa. Se o pai de uma família morre, nada acontece. Mas se é a mãe que falece, qualquer um tem o direito de arrebentar a porta da casa e estuprar a filha. E se mesmo nessas condições a menina perde a virgindade, o pai também tem o direito de expulsá-la de casa porque ela desonrou a família. Você pode estar se perguntando: por que eles não invadem antes para estuprar? Qual é o papel da mãe nessa proteção? Porque apesar do abuso e objetificação das mulheres, as mais velhas são respeitadas. (???)

Mas o quadro ainda piora.

“Se você encontrar uma mulher Masai com 40 anos ou mais, pode ter certeza de que ela passou pela mutilação. Você pode identificar também pela forma de falar baixo, a vergonha, se engordam muito em pouco tempo…”

Ironi falava sobre a Mutilação Genital Feminina, prática ritualística comum em mais de 30 países da África, Oriente Médio, Ásia, América Latina e Austrália e ainda exercitada pelos Masai Mara. O objetivo é remover parte ou todo o órgão sexual externo feminino para eliminar o prazer das mulheres. São quatro tipos de cisão que avançam gradualmente em termos do quanto é retirado, sendo o corte do clitóris o mais básico e a remoção adicional de pequenos e grandes lábios, assim como o fechamento da vulva, a forma mais grave. Normalmente feito com uma lâmina e sem anestesia, tem uma série de consequências, como infecções de cicatrização ou de urina, cistos, hemorragias e dificuldades para engravidar ou gestar.

Hoje, graças ao acesso a celulares e à internet, elas percebem que existe uma vida alternativa em que mulheres não são mutiladas ou forçadas a casar cedo. O governo trabalha na campanha de conscientização assim como ONG’s e programas de direitos femininos da ONU, mas há muito chão pela frente: mesmo com a vitória de tornar a prática ilegal, continua sendo realizada – só que agora em crianças a partir de 4 anos de idade… justamente porque elas não vão entender que há algo de errado nem vão se rebelar, possibilitando assim maior discrição.

As meninas maiores que possuem informações externas tentam fugir e as que escapam podem ser abrigadas pelo projeto Nyumba ya Bibi Sebastiana (Casa da Vovó Sebastiana em Suahíli), criada por Ironi em 2014. A ideia é profissionalizá-las na arte da costura ou do artesanato pois, assim, quando voltam à tribo – e elas querem retornar –, podem ser respeitadas. Afinal, podem comprar sua própria vaca e não precisam mais ser trocadas por gado, obrigada.

Ironi Ribeiro e Sara do projeto Nyumba ya Bibi Sebastiana
Ironi reencontra Sara após anos – “nunca mais passei fome depois que parti do projeto”, nos disse

É o caso de Sara, que após cumprir com um ano do programa, aos 16 anos, aprendeu a costurar e pode voltar ao vilarejo em outras condições. “Nunca mais passei fome”, disse – nem as cinco pessoas de sua família, sustentadas por ela. Hoje, aos 20, faz 120 mil shillings tanzanianos por mês (cerca de R$ 240), dos quais 50 mil vão no aluguel da área externa de uma casa, seu espaço de trabalho.

Um adendo: a maioria quer retornar e a isso não cabe julgamento. O vínculo ao coletivo, à família e às tradições são extremamente arraigadas na cultura africana e, a bem da verdade, o Ocidente é que deveria aprender alguns valores a partir dos valores colaborativistas.

Julho e agosto são os meses em que mais recebem meninas no projeto: por ser a época mais fria, é quando fazem a temporada da mutilação sem anestesia. “Acolhemos mulheres em situação financeira precária também”, conta Ironi. “Mas a prioridade são as que sofrem com abuso sexual ou que estão prestes a serem casadas ou mutiladas.”

A questão das viúvas Masai

Por fim, aos homens é permitida a união poligâmica. Um caso curioso de que se tem notícia na Tanzânia é a de um Masai com 26 esposas e mais de 100 filhos – o governo teve de construir uma escola pra ele. Mas isso também leva a outro problema… Quando um marido morre, deixa duas a quatro viúvas e muitos órfãos sem estrutura financeira alguma – justamente porque os papéis sociais ligados aos gêneros são radicais e cabe apenas ao homem trabalhar ou fazer negócios para sustentar a família. Estamos falando em mulheres que, se perdem um marido, passam fome com seus filhos.

Essas viúvas continuam nas vilas mas, dependendo da idade e condições físicas, optam por não seguir com as outras famílias no nomadismo em busca de água e melhores pastos. E, mesmo que o idoso na África seja respeitado e valorizado, mesmo que a mulher tenha uma função importante na tribo de orientar e ajudar as mais jovens, a comunidade não tem recursos para provê-las. “A cultura Masai é totalmente baseada no gado, não no plantio e no domínio da terra”, conta Ironi. “E a relação dos homens com esse gado é quase uma obsessão: dê dinheiro a eles e comprarão um cabrito mesmo com esposa ou filhos doentes e famintos em casa. Dê dinheiro ou mantimentos às mulheres e alimentarão a elas e às crianças.”

Para dar assistência a essas mulheres é que Ironi também criou o projeto Noemi, que consiste em realizar missões mensais com visitantes ou não para levar mantimentos básicos (farinha de milho, açúcar) e roupas à comunidade. “Esse ano tem sido difícil com toda a situação do coronavírus – com as fronteiras fechadas, não há turistas entrando, então estamos indo a cada dois meses. Além da comida, também ministramos a palavra de Deus – louvamos, cantamos…”


De repente, o jipe saiu da estrada e adentrou um caminho de terra que nem parecia caminho. Aos poucos, fomos nos aproximando de uma construção clara no meio da planície verde e em determinado momento pude enxergar o símbolo da cruz no alto da casa. Do lado de fora, uma multidão de mulheres coloridas nos aguardava. Eu estava nervosa – confesso que minha vontade era de abraçar cada uma delas, mas não imaginava qual seria o cumprimento adequado. As anciãs logo me deram a resposta ao me dar a mão com vigor, puxando para encostar o ombro esquerdo no meu direito. “Karibu”, diziam, ao que eu respondia com um “chikamon!” – nos meus aprendizados sobre Suahili, soube que essa era a saudação mais respeitosa aos mais velhos. Surpresas, elas riam e apertavam minha mão com ainda mais vigor.

Assim que entramos na igreja colocamos o pé no corredor formado por dois grupos de mulheres e crianças. Muitas destas, aliás, puseram os olhos em mim no susto e desataram a chorar aos prantos. Seguimos e sentamos nas cadeiras de plástico encostadas na parede lateral. No altar, montado apenas com um pequeno palanque, o padre da comunidade dava o comando para que a cerimônia se iniciasse.

masai mara mission with widows in tanzania
masai mara mission with widows in tanzania

E então fomos tomadas – sentada na cadeira, ficava da altura das crianças enfileiradas á frente e minha linha de visão coincidia com a delas. Ver de baixo aquelas mulheres esguias saltando no ar, com os discos de miçangas e brincos chacoalhando no ritmo do corpo, todas puxando a voz de algum lugar ancestral e cantando em uníssono… de repente me fez entender a imagem potente da matriarca no imaginário dos pequenos e, por consequência, da tribo. Como aquela magia podia ser renegada a um vilarejo esquecido só por causa da ausência de um marido?

masai mara mission with widows in tanzania

Terminada a cerimônia Masai, iniciou-se outra: a missa católica. Enquanto o padre rezava em Suahili, todos fechavam os olhos. Eu abria um dos meus pra ficar presente a tudo que acontecia à minha volta e foi assim que percebi os pequenos fazendo o mesmo: usando as pequenas mãozinhas pra cobrir o rosto, abriam os dedos uma vez ou outra pra espiar de rabicho.

Era hora de distribuir as doações. As matriarcas voltaram a cantar e bater palmas enquanto Ironi abria as malas e desembrulhava bonecas de pano, vestidos, calcinhas e cuecas, chinelos… os mesmos olhinhos sapecas das orações agora duplicavam de tamanho ao perceber que iriam ganhar presentes.

missão em tribo masai mara na tanzânia
masai mara mission with widows in tanzania

Eu agachava pra conversar com elas, mas não dava outra: a muzungu era um bicho-papão que assustava no minuto em que percebiam que eram o foco da minha atenção. Será que eu causava pânico por ser diferente? Ou por causa de histórias de ninar que contavam sobre o homem branco? Nunca vou saber, mas independentemente da opção sei que tem a ver com uma ferida da memória coletiva que eu entendia de onde vinha – não importa por onde eu viaje em solo africano, minha pele branca sempre vai carregar os privilégios que herdei daquele que invadiu, explorou, colonizou.

masai mara children in kenya

Sentia algumas mulheres ariscas da mesma forma, mas outras tinham interesse na troca – mesmo não falando a mesma língua, soltávamos sorrisos umas pras outras. Uma delas quis me dar um colar de contas azul e branco e agradeci infinitamente o gesto.

masai mara mission with widows in tanzania
Jaz ajudou na distribuição de açúcar e farinha
masai mara mission with widows in kenya
masai mara mission with widows in kenya

Olhos abertos e atentos, chegou o momento dos mantimentos. As mulheres se organizaram em fila empunhando sacolas de lona. Jaz e Rachel distribuíam a farinha e o açúcar que havíamos comprado e algumas masai tentavam entrar na fila de novo após já terem recebido sua parte. Eu fotografava tudo com minha câmera – Ironi precisava mostrar a outros membros e doadores do projeto o relato da missão.

masai mara widows in tanzania

Em determinado momento, encostada na parede em cima do palanque, fui escorregando enquanto fotografava para captar um ângulo mais baixo. Ao colocar a mão no chão, não sei como apoiei todo o peso no dedão, que logo deu um estalo alto. “Ah, pronto, quebrei meu dedo”, pensei enquanto sentia todo o sangue da cabeça esvair. Prestes a desmaiar, senti os olhos em mim. Inês e Rachel logo me socorreram, colocando minha cabeça entre as pernas e empurrando-a para baixo enquanto eu fazia força contrária. Então o padre veio, colocou a mão na minha testa e começou a rezar e pregar. Zonza, só fechei os olhos e tentei me concentrar pra sensação pré-desmaio passar logo – alguma coisa deu certo porque melhorei sem ter apagado.

masai mara mission with widows in kenya

Dali a dez minutos já estávamos de partida. Do lado de fora da casa, todas as mulheres se juntaram para dar tchau – uma delas, que não parava de sorrir pra mim desde que havia chegado, me deu um de seus colares. Um universo se despedindo de outro.

Ajude o projeto

O abastecimento das viúvas e de suas crianças, que depende da visita e financiamento de turistas, bem como o abrigo de jovens Masai pela ONG Nyumba ya Bibi Sebastiana depende de doações para seguirem. Por causa da pandemia, ambos os projetos passam por sérias dificuldades – então se você chegou até aqui, ressoou com a causa e quiser ajudar, basta entrar em contato com a própria Ironi pelo email ironi.missoes_africa@hotmail.com ou pela página do Facebook.

Marina Pedroso

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