A magia do Tofo

O Tofo tanto me chamou que eu vim.

Fiz uma passagem relâmpago de dois dias por Joanesburgo e dei azar – nada abriu no dia 25, quando cheguei, nem no 26 porque era Boxing Day que, como viria a descobrir, também era feriado. Foi bom pra conhecer o Vini, jornalista correspondente na África que virou host do Couchsurfing e amigo, e a Paola, brasileira querida conduzindo um doutorado brilhante sobre a branquitude em currículos vitae na conexão África-Brasil.

A ida ao Tofo foi um atropelo só – depois de pegar o ônibus noturno pra Maputo, cheguei na unidade do Fátima’s da cidade logo cedo na madrugada seguinte embarquei na van fechada pros hóspedes que iriam à praia. Cometi o pior erro sem saber: sentei na última poltrona, na janela. Só fui perceber que ela não abria às 9 da manhã, quando o calor começou a cavar minha pele e expulsar toda a água do meu corpo pelos poros. Espremida nesse forno abarrotado de gente e sem conseguir me mexer, não sei como não passei mal durante aquelas 8h de sacolejo.

Fiquei hipnotizada pelos cabelos das meninas portuguesas sentadas na fileira à minha frente – com as janelas escancaradas, os fios voavam e me lembravam de um sonho recorrente em que morro de sede, vejo um suco de laranja com gelo à minha frente e, por mais que eu vire o copo, não consigo tomar. Imaginei como seria bom meus cabelos voarem como os delas – se ao menos o vento chegasse até mim, ai.

Cheguei zonza com meu mochilão e a barraca que Matabicho tinha me emprestado pra economizar nas diárias. Relutei porque imaginei que poderia ser um perrengue grande só pra economizar 200 meticais por dia (equivalente a 50 reais, mais ou menos), mas no fim foi a melhor escolha: a área do acampamento era enorme e pouquíssimas pessoas estavam por lá. Sem contar que era longe de onde a festa estava sendo armada, portanto, mais silêncio.

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Minha casa durante meus dias na Praia do Tofo

Apesar disso, tive uma surpresa. Quando abri tudo, percebi que o saco de dormir, na verdade, era um daqueles isolantes térmicos – nem se eu me esticasse com os pés juntos e colasse as mãos no corpo eu conseguiria caber. Minha sorte é que à noite não fazia frio porque nem manta eu tinha. Então acabei usando um ctrl + shit: talvez porque a diária do hostel fosse mais cara que outras opções, não rolou o full house no fim de ano – mesmo com o ingresso do festival incluso na estadia, muita gente preferiu comprar à parte. Muitas camas nos quartos compartilhados estavam vazios – e dois dias depois, quando já estava cansada de dormir na barraca, comecei a invadir os colchões vazios.

A estrutura montada em frente ao hostel já anunciava como seria o festival

Eu levaria pouco tempo pra descobrir o porquê de estar ali. Logo no primeiro dia conheci Feby, a moçambicana mais louca e livre, e Ju, uma advogada paulista que reconheci pelo português que só brasileiro tem. Cada uma com a sua poesia e putaria, foi só quando me despedi de ambas que percebi o quanto tinha aprendido com cada uma.

Feby foi uma surpresa – por trás da comédia (impossível passar um segundo sem rir ao lado dela) tinha uma história de amor doída. Ninguém melhor do que ela para contar.

Febylicious <3

Já conhecer a Juliana me fez perceber quão arrogante, fechada e preconceituosa eu sou – fora a nutellice. Como tenho viajado na minha zona de conforto. Como ainda estava com medo. Quando Ju contou como viajou de carona pela Garden Route e que visitou tribos Xhosa e Zulu em Coffee Bay, as conversas que teve com as mulheres locais, a facilidade com que ela fez amizades e como as pessoas se abriram de volta, a Impostora deu uma piscadela pra mim: “Enquanto isso, você ficou duas semanas perdida, foi expulsa de um Couchsurfing, não conectou com tantas mulheres quanto deveria nem visitou tudo da Cidade do Cabo – a Garden Route, inclusive, que você queria tanto… ora francamente, garota!” Caí na cilada de comparar meu processo com o dela e, claro, dá-lhe autochibatada.

Dando rolê de caçamba com Ju até Inhambane

No último dia de 2019, pegamos carona na caçamba de uma caminhoneta pra conhecer a cidade de Inhambane. Em determinado momento, enquanto andávamos pelo centro, vi uma moradora de rua vagando como uma fantasma no asfalto, vestida em trapos que mal cobriam os seios e a vagina. Eu só consegui olhar e pensar que sem dúvidas ela devia ter sido estuprada. Quando encontrei Ju, ela perguntou se eu havia visto a mulher – queria dar a regata que vestia no corpo para ela se cobrir um pouco.

Tudo isso bateu. Admirei tanto a Ju que não pude evitar a comparação – acho que é algo intrínseco a toda mulher e me faz lembrar muito de Lina e Lenu na série Napolitana da Elena Ferrante. Mas em vez de me por pra baixo, usei pra trabalhar um pouco a humildade e enxergar que eu ainda tenho muito pra melhorar como pessoa e como mulher.

Outra lição veio de Ov e KK, dois primos sul-africanos. Na pista do festival não dava pra ninguém – eles roubavam a atenção com seus passos de dança livres e peculiares. Não vou negar que eu me diverti assistindo todas as noites os dois praticamente uniformizados com o combo chapéu de palha, camisa aberta no peito + bermuda num frenesi de estampas tropicais. Ambos se aproximaram de mim em momentos separados diversas vezes, mas eu não dei espaço nem pro “oi” – julguei que só queriam flertar e eu não estava disponível, muito menos com humor ou paciência. Na noite da virada cheguei a ser rude – Fátima desligou o Wifi às 16h e não ligou até o dia seguinte. Fiquei fula por não conseguir falar com meus pais e namorado – com certeza iriam pensar que eu não estava dando a mínima… então quando os meninos chegaram perto, VRÁ na cara deles.

No dia seguinte, acordei e me sentei com as meninas – aos poucos a mesa foi se povoando com a galera, incluindo Ov e KK. Tivemos uma conversa daquelas sobre racismo, futuras gerações, machismo, governos… e percebi como eles eram pessoas decentíssimas e que, sim, eles realmente só queriam conversar e conhecer gente nova. No final, pedi desculpas pelo meu comportamento nos dias anteriores, por não ter dado a chance de trocarmos antes. Não é só de homens babacas que as pistas estão cheias – tem muita mina também e eu admito que fui estúpida sem motivo. O fato de eu reconhecer isso abriu as portas pra uma amizade inesperada e que vou levar pra vida toda.

El trio de bro’s: KK, eu e Ov

Vivemos os dias seguintes como um bando de irmãos – de dia íamos à praia e, à noite, ao mercado central de Tofo, onde a festa continuava com cerveja, som e gingado nas ruas. Foi numa dessas noites que cruzei com Nery e suas irmãs, moçambicanas que estavam dançando ao lado de uma picape com música no último. Não me pergunte como isso aconteceu, mas acabei no meio da roda dando uma aula de quadradinho de 8 (que eu nem sei fazer direito, por sinal). Ficamos amigas então. Nery fez um desabafo e nos convidou para almoçar e passar um dia com sua família em sua casa na cidade, em Inhambane.

A fatídica noite em que dei uma aula de quadradinho de oito pra moçambicanas – quem diria

Foi em uma dessas noites também que eu e os meninos pulamos o muro de bamboo do hostel, esticamos cobertas na areia e deitamos pra olhar o céu estrelado com o som do mar ao fundo. Lembro de ter pensado em como sentia falta de comer hambúrguer e em como a vida pode surpreender a gente com encontros tão improváveis, mas tão destinados a acontecer.


Sabe aquela pessoa que para a cada segundo para cumprimentar alguém porque conhece todo mundo? O prefeito da cidade… Bem, o hostel da Fátima tinha dois deles. Os meninos logo revelaram seus dons e, no último dia, juntaram todos os amigos pra um almoço improvisado de despedida – tínhamos ido ao mercado central mais cedo e comprado lagostas a preço de banana, que logo viraram mágica com os temperos indianos de Ov. Os DJs do festival faziam parte da nossa galera e cuidaram do som e da cerveja. KK também deu show com os abacaxis com especiarias típicos das praias de Durban, cidade sul-africana em que nasceram. Eu, bem… mostrei meus dotes de taurina.

Tudo acabou com um por-do-sol digníssimo. Eu e KK começamos a dançar. O sol foi embora e nós também.

Tofo, thanks for the magic

Ao mesmo tempo em que tudo isso acontecia, eu quebrava a cabeça pra retraçar meu roteiro. Minha ideia inicial era subir Moçambique por terra até a Tanzânia, mas fui avisada para evitar o norte por conta de conflitos armados envolvendo grupos islâmicos. Provavelmente eu teria que pegar um voo, mas saindo de Maputo ficava tão caro… Um dia, boiando no mar com Ov, ele me falou da sua frustração com o preconceito que as pessoas tem com sua cidade, Johannesburgo. Um relâmpago me atingiu a mente. Ué, por que não voltar pra Joburg? Eu saí da África do Sul incomodada por ter ficado três semanas em Cape Town e dois dias em Joburg, sendo que não tinha conhecido nada por ser feriado. O voo pra Tanzânia certamente seria mais barato de lá e eu conheceria o ashram democrático que os pais de Ov tinham montado em seu quintal.

Pronto, tinha decidido. Do Tofo, subiria pra Vilanculos, uma vila de pescadores que me recomendaram conhecer e onde já tinha conseguido um local pra me abrigar. Depois, voltaria pra Maputo, onde entrevistaria algumas mulheres para o Womanifests. De lá, tocaria de volta pra Joburg e pegaria um voo pra Tanzânia (só não sabia pra onde, exatamente, mas isso eu resolveria depois).

O prefeito Ov decretou: “nossa, não acredito que vou poder te mostrar o lado bom de Joburg. Vou chamar todo mundo, vou montar o roteiro, você vai saber como vivemos por lá. Vai ser épico!”

Ainda não sabíamos disso, mas épico seria pouco pra descrever, querido Ov.

Marina Pedroso

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