Passei quatro meses em Mombasa sem previsão alguma de quando iria partir. Então, em um dia aleatório de julho, meu celular tocou: uma amiga do dono do apartamento soube da minha existência e quis me conhecer. À noite, depois de alguns drinks, me convidou pra ficar na casa de sua família punjabi em Nairóbi – eu poderia ajudar em uma ação voluntária de distribuição de comida que fariam para algumas comunidades naquele final de semana e, de quebra, me levariam para conhecer a cidade melhor. Na manhã seguinte já estava na estrada com ela e seu irmão.
Foi louco ter morado tanto tempo em um lugar e, em uma hora, arrumar tudo no mochilão e sair sem olhar pra trás. Acontece que fiz um trato com a vida – eu iria pra onde tivesse de ser levada. Se ela precisar de mim ali, tudo que tenho de fazer é consentir o empréstimo e o resto ela se encarrega. É um estado de ser totalmente novo porque exige que eu pare de querer controlar e saber as respostas pra tudo, que eu confie. Foi assim que decidi começar a volta ao mundo pela África, aliás: foram tantos sinais que uma hora eu simplesmente aceitei. Hoje, entendo que eu tinha de passar por certos lugares e conhecer determinadas pessoas – eu tinha de perder o avião no primeiro dia. Se fosse diferente, a jornada teria sido outra. O que significa que estou exatamente onde preciso estar.
Essa última frase brotou na mente enquanto enchia marmitas com arroz e lentilha freneticamente durante a ação organizada pelo SikhAid, grupo Sikh que distribuiu 1100 refeições na rua só em um final de semana. Minha presença não foi crucial, mas acho que eu é que tinha de despertar pro fato de que posso fazer mais nesses tempos tão loucos. Dar um tempo do mergulho no vulcão interno e ver outras realidades. Respirar. Renovar a confiança. Me deixar levar.
O que era pra ser uma semana em Nairóbi viraram três. De um lado, sentia uma necessidade tremenda de voltar pra perto do mar de Mombasa e de ficar no meu silêncio – a quarentena na costa era mais respirável que na capital queniana, campeã em novos casos diários de Covid-19. Mas por outro, a família foi me acolhendo…
No segundo dia a mãe pediu pra eu parar de agradecer. “Queremos te tratar como uma de nós, mas se você disser ‘obrigada’ pra tudo, não vai se misturar – é uma formalidade que não usamos uns com os outros aqui, então aja como uma de nós.”
Mais do que conhecer um pouco da filosofia Sikh e voluntariar em um templo, tive dias de deusa e soltei vários inshallah vestida com saris riquíssimos, aprendi a tomar whiskey (será?) e ganhei um irmão no dia do festival Raksha Bandhan.
Me levaram pra conhecer o Nairobi National Park, única reserva de vida selvagem no mundo a existir dentro de uma cidade, e fiz um intensivão pra melhorar minha tolerância com pimentas. Aliás, os tempos de quarentena na capital me levaram a testemunhar a vida acontecendo na cozinha: desbravando pratos indianos, as mãos habilidosas e cheias de temperos das mulheres da casa lentamente foram abrindo caminho para que eu ouvisse suas histórias.
Eu dizia que precisava ir, a família me pedia pra ficar mais – e assim foi até eu reconhecer mais um padrão meu que precisava ser curado: aquele em que não priorizo o que realmente quero fazer só para satisfazer e/ou não magoar o outro. Eu precisava assumir o volante e dar mais um passo rumo ao amor-próprio. Isso porque, ao me forçar a permanecer e prolongar um ciclo que já deveria ter sido encerrado, também alimentava a sensação de que estava me traindo… de que meu mundo interno não era tão importante quanto o externo. Eu estava me silenciando.
E justo quando me acostumava a parar de dizer obrigada, a mãe me fez retomar o hábito. Foi ela que acordou de madrugada pra me colocar no uber, encheu minha bolsa de lanches e, antes de eu finalmente partir pra Mombasa, me deu um sinal de proteção na testa e me benzeu com a água de um templo sagrado da Índia que mantinha em um potinho de seu altar. Bem que ela tinha me dito, dois dias antes, enquanto lia minhas cartas no tarot: “você ainda vai encontrar muitas pessoas no caminho que vão te dar amor incondicional. Esse mesmo amor que você encontrou aqui nessa casa punjabi…”
E foi assim que, inesperadamente, passei três semanas em uma família punjabi durante a quarentena do Covid-19 no Quênia. Sem planejar, aprendi sobre como tolerar pimenta, beber whisky e receber amor…
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