chaves antigas da turquia

A prisão do tempo

“Tenho que” e “preciso fazer isso” são termos que me peguei usando de forma obscena e que indicam o quanto violava meu ritmo pra seguir um que não me era natural, que não estava de acordo com a minha fase de vida. Era parte de um paradigma que precisava ser quebrado. O jogo começou a mudar quando, logo após as palavras-cobrança, duas outras pipocavam junto: “quem disse?”

O pacto coletivo é essencial pra viver em sociedade. Como bem colocado em Sapiens, de Yuval Harari, concordar sobre determinadas realidades imaginadas e elementos criam pontos em comum pra nos organizarmos e leva ao senso de comunidade e pertencimento. Fora referências que podem servir como norte pra jornada individual. O perigo é quando surgem as caixas-padrão e a tentação de se moldar a elas justamente para pertencer a esse coletivo quando, claramente, temos marcas e formas de ver o mundo que são só nossas – é isso que nos torna indivíduos, afinal.

Caixas assim não servem a todos os corpos, a todos os jeitos de funcionar, a todas as linguagens de amor, todos os sonhos e necessidades. Caixas que me fazem abrir mão do que é natural pra mim só pra me encaixar em outro modo de fazer viram prisões.

E, bem, eu percebi o quanto o pacto coletivo sobre como o Tempo funciona de forma linear me levou a criar uma cela pra uma das partes mais bonitas em mim – meu próprio cérebro.
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Não existe uma verdade única sobre como devemos contar o Tempo. O calendário gregoriano é só um dos jeitos, tanto é que existiram períodos na história anteriores a ele. Tanto é que nem todo país o segue – quando estive na Etiópia, descobri que usam um calendário de 13 meses e que a primeira hora do dia, a madrugada, é a partir do nascer do sol. Já no Egito aprendi que o calendário muçulmano se baseia nos ciclos da lua… Dia desses li sobre como uma tribo na Namíbia conta a idade das pessoas não a partir do dia do nascimento, mas do dia em que a mãe decidiu que queria ter um bebê.

A cronologia é uma forma de organizar eventos na ordem em que acontecem – o ‘antes e depois’ ajuda a entender melhor a causa e o efeito, a evolução de um personagem ou ideia. Mas quem disse que é o único jeito? Fui pesquisar e encontrei que foi Karl Ploetz, um alemão de 1800 e bolinhas, que teve a ideia de arranjar dados históricos em datas pra mostrar a evolução da humanidade. Criou-se a Linha do Tempo que, fast forward, a Era Industrial transformou em uma esteira acelerada e maquinada para metrificar a produtividade. E se você não estiver produzindo no tempo estipulado, quebra o pacto do coletivo: bye-bye, querido – você não tem mais valor pra nós.

Era por isso que eu vivia na cobrança de contar todas as histórias de forma cronológica e linear? Enquanto eu tinha ânsia de compartilhar algo do presente, não o fazia porque havia histórias do passado esperando na linha de produção – elas só iam se acumulando e eu não materializava nada, aumentando meu terror… Porque dois séculos atrás um cara criou um método que virou o padrão de um sistema. E eu acreditei que, se não fosse no tempo linear, minha narrativa não faria sentido, eu não seria compreendida, eu não faria mais parte.

Até alguns dias atrás eu achava que tinha que liberar as histórias do Egito pra finalizar o ciclo e, só então, compartilhar sobre o país seguinte. Falei isso de um lugar de “tenho que”. Um que não me deixa em coesão com uma das minhas prioridades do momento, que é estar no presente. E o peso de ter tantas histórias no passado que eu ainda não havia compartilhado justamente porque precisava digeri-las antes, me prendia lá – passei meses em um bloqueio de escrita porque não entendia como ordenar a narrativa, por onde começar. Paralisei com o peso da culpa e da frustração de não saber como caber em uma caixa.

Só que quem tem que saber como devo contar minha história sou eu.

Eu tenho muitas dimensões pra caber só em uma linha e minhas sinapses não se comportam em fila – funciono de outro jeito. Como eu lido e aprendo com minhas experiências de viagem e de vida não seguem uma linha unidirecional: há histórias que simplesmente não estão prontas pra serem transmitidas porque precisam de mais tempo no forno, no ventre. Pode ser que só um fato que me ocorra hoje abra a porta pra entender um episódio ou conversa que me aconteceu meses atrás – porque minha versão de então não tinha acesso à chave nem conhecimento de ter uma porta ali como a de hoje tem.

E eu acabei de encontrar uma chave. “Quem disse que tem que ser assim?” Se o Tempo virou uma linha nas mãos de um alemão, nas minhas ela poderia ser usada para costurar. Posso me libertar do passado. Deixar minhas histórias lá, fermentando, voltar pro presente. Na hora certa viajar de volta no tempo e buscar o material pra tecer no agora.

Essa história não é sobre uma mulher que simplesmente pegou a mochila pra viajar o mundo. É sobre uma mulher que topou uma jornada pra conquistar a liberdade de contar sua própria história. Que em vez de continuar sendo refém do passado, do tempo, das caixas, dela mesma… tomou a frente e convidou-os a dançarem com ela. E assim caminha a sua humanidade.

Marina Pedroso

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