Desculpe, mas a mamãe é viajante

Ela entrou na minha vida debaixo de um sol de quase 40ºC.

Não lembro se foi seu grunhido ou seu corpo se debatendo – enquanto caminhava por Giza, me deparei com um saco de cimento amarrado e, quando percebi que havia vida dentro, meus dedos tremeram em pânico a desatar aquele nó. Os urros aumentaram e, ao abrir, vi uma tripa de relance. Foi o suficiente pra eu começar a gritar na rua. Pensei ser um gato atropelado, mas ainda vivo… não podia ver, tapei o rosto com as mãos. Mas ela miava sem intervalos, desesperada por vida – que tipo de gente eu seria se negasse socorro?

Abri o saco de novo… e então, a vi. O corpinho magro, molhado e selvagem. Os olhos e a boca ferozes protestando contra o abandono naquele forno, sem qualquer possibilidade de saída. Desumanidade ou ignorância – a tripa que eu havia visto era, na verdade, um peito de frango cru que deixaram para que ela “não morresse de fome”, como se ela pudesse comer aquilo. Como se ela não fosse já morrer naquele forno de lona inescapável.

gato dourado

Não sei se os pelos estavam ensopados de suor ou de tanto se debater com o peito de frango – mas sua imagem sugeria que estava sendo parida uma segunda vez pra vida. Acho que foi naquele mesmo segundo que nasci como mãe. Estiquei a mão dentro do saco infernal, agarrei ela contra o peito e atravessei a rua como louca atrás de água. Alguns meninos que haviam me visto gritar me levaram até uma torneira, de onde ela bebeu da minha palma. O calor surreal de seu corpo me assustava: ela fervia e arfava como o próprio sol.

Liguei pra Pathi na hora. Era seu último dia dos nove meses que passou no Egito, mas saberia o que fazer. De fato, ela me tranquilizou – enquanto dava um banho de pia na gata, calculou que S., uma amiga do hotel, poderia cuidar da bichinha até que ela retornasse dois meses depois e, então, a levaria para o Brasil também. Só que a ideia não foi tão bem recebida pela tal amiga…

Todas estávamos emocionalmente sobrecarregadas. Então quando S. explodiu pra cima de mim dizendo que a gata era responsabilidade minha, petrifiquei. Eu não tinha como ficar com ela – não só por estar viajando de mochilão, de couchsurfing e hostels, mas porque havia dias em que nem sabia onde terminaria dormindo…

Eu vivo constantemente a agonia de não saber que rumo tomar. De não saber o que vai ser de mim, onde vou estar semana que vem. “Onde vou dormir amanhã? Preciso achar algo barato pra comer… Quando a vida não está no piloto automático, os mínimos detalhes exigem tomadas de decisão com consciência. Na estrada, o nível de atenção deve ser ainda maior – é preciso decidir com estratégia pra não gastar tempo, dinheiro e energia à toa. E qualquer escolha convoca a responsabilidade por tabela porque as consequências serão suas filhas também. E se já é assustador tomar conta de mim mesma, a coisa triplica quando envolve a vida de outro serzinho que depende de mim. É como se perdesse ainda mais a liberdade de errar…

Mais do que tudo isso, Shams escancarava um espelho pro qual eu não queria olhar. De alguma forma, meu subconsciente já sabia que ela refletia minha criança. Uma pequena leoa selvagem com um tremendo potencial de vida coexistindo com a fragilidade, a carência e feridas de rejeição e de abandono. Eu não queria ter responsabilidade material e afetiva por ela porque eu ainda não assumia totalmente essa responsabilidade em relação a mim mesma.

Desmoronei no abraço de Pathi. Ela foi apenas uma de tantas despedidas que aconteceram naquela semana. Além de essa irmã que o Egito me deu partir de volta ao Brasil com meus três gatos-afilhados, dei adeus a pelo menos cinquenta amigos que fizeram parte do meu mundo 24h por dia por duas semanas inteiras (uma eternidade) durante o Nasser Fellowship for International Leadership, programa do governo egípcio que participei no início de junho. Pessoas que entraram na minha vida do nada e que se tornaram uma zona de segurança.

Ao mesmo tempo em que a vida trazia esses gatilhos de abandono pra despertar o que devia ser curado, ela me entregava um outro ser com a mesma ferida para que eu cuidasse. Aos prantos, dizia a Pathi como estava com medo: eu ainda estava aprendendo a cuidar de mim mesma, como iria cuidar de uma gatinha? Que terror uma vidinha dessas depender assim de mim…

patinha de gato dourado

Não teve jeito – levei Shams comigo pro meu hotel. Surpreendentemente, o dono disse logo de cara que tinha uma família para adotá-la… Mas nos dois dias seguintes, ela não saiu do meu lado. Levei-a na veterinária e comprovei minha intuição de que ela estava com febre. Segurei ela em meu abraço pra amenizar a dor das vacinas, ninei-a no meu peito até que parasse de tremer depois de ter passado mal e vomitado. Criei um banheiro improvisado com uma caixa de máscaras descartáveis e areia do deserto das pirâmides. Ela se encaracolava em mim pra dormir de conchinha, me acordava com lambidas no rosto. Era só chegar da rua que vinha miando pro meu colo. Se eu tentasse sair de perto por qualquer motivo, miava ainda mais em protestos – só acalmava e me deixava tomar banho se eu a enrolasse em um pedaço da minha roupa pra ela sentir a presença no cheiro.

gato sentindo cheiro em vestido
Distância máxima permitida por Shams entre seu corpo e meu colo: 0mm
banheiro improvisado para gato
Banheiro improvisado com caixa de máscaras e areia do deserto de Giza – sim, onde ficam as pirâmides
sendo acordada por shams
Ser acordada por Shams: uma experiência de viagem que não contava ter

Me adotou como sua mãe e começou a me ensinar o peso que é ter responsabilidade sobre uma vida tão pequenina. A preocupação, o instinto, a ânsia de estar perto. Ela fez xixi nas minhas roupas, mas eu é que fui perdoada a cada vez que encontrava seu caminho até se encaracolar no meu pescoço. Shams reivindicou de mim o amor que lhe foi negado – e me deu tanto mesmo tendo conhecido o mal do mundo em apenas dois meses de vida.

mulher com gato pequeno no colo

E quando Pathi viu nossas fotos, soltou uma sentença que me revirou: “Má, ela é sua. É seu tesouro, amarela como ouro. Você não vê ela viajando com você? Foram feitas uma para a outra!”

Eu aceitei a sugestão como uma predestinação – como no filme A Origem, uma ideia-semente havia sido plantada. Eu realmente passei a enxergar como se ela fosse um presente enviado a mim, como se ela devesse seguir no meu caminho dali em diante.

Mas agora é só vazio. Começo a escrever o que foi Shams em minha vida da cama de um hostel no Cairo, sem ela pendurada no cangote, e termino mais de um mês depois, em Dahab, tamanha dificuldade de nadar por tanto sentimento. Desde que ela se foi, vira e mexe me sinto febril – efeito do sol que foi ela em nossa longa vida de dois dias juntas.

O que se passou: Furei o combinado de levá-la para conhecer a nova família e pedi para passar mais uma noite com Shams. Resolvi estender uma diária no hotel pra pensar no que fazer – e aí, passei a olhar racionalmente pra possibilidade. Se eu seguisse com ela, como faria para ficar em hostels e couchsurfing?Teria que gastar muito mais com hoteis. E a comida dela, os documentos? Será que ela aguentaria tanto movimento e mudança? E se ela ficasse doente?

gato olhando da cama
Toda vez que andava pelo quarto, Shams nem se mexia na cama – mas me acompanhava com os olhos…

Na manhã seguinte, fui pega de surpresa: o homem que ia nos levar à família havia viajado a Alexandria e não voltaria tão cedo. Assim que a recepcionista do hotel soltou a informação, emendou com um “mas eu fico com ela!”

Foi um misto de alívio e dor. Eu estava resistindo à família porque não a conhecia – será que a tratariam bem? Será que a abandonariam de novo? Mas Eman havia se apaixonado por Shams no momento em que a viu. E então me contou ter uma família de mulheres… uma de suas duas filhas havia feito aniversário no mês anterior e tinha pedido por um gato, que não ganhou porque a mãe não podia pagar.

Ao mesmo tempo, me chamou a atenção a facilidade com que aparecia alguém querendo adotar Shams. Foi quando comecei a questionar a sentença de Pathi – se fosse pra ela seguir comigo, os caminhos se abririam pra isso, não o contrário.

Então tive de fazer uma escolha.

menina se despede de sua gata

Quando coloquei Shams no balcão para entregá-la a Eman, ela correu de volta pra mim e se escondeu no meu cangote. Segurei o nó na garganta. Em vez disso, sussurrei em seu ouvido: Meu amor, eu sinto muito. Eu te amo e você virou tudo pra mim. Jamais pense que te abandonei – minha maior vontade é ficar com você, mas é que a mamãe é viajante. Eu te prometo que você vai ter uma vida muito mais feliz com uma garotinha que também te deseja muito. Aliás, você sabe o que significa Shams? É sol em arábico. Eu te chamei assim porque você foi um sol em minha vida e, agora, precisa iluminar outras vidas…

E não vou mesmo. A começar pelos seus olhos fixos em mim, me acompanhando de dentro da sacola enquanto Eman ia embora pela rua. Olhos de quem havia sido abandonada de novo…

o quebra-cabeças das minhas verdades

Há sempre aquele primeiro momento em que, com coragem, se admite: as minhas verdades podem não ser minhas. De quem são? Quem disse que tem que ser assim? E no quê EU acredito então?

E então a travessia no deserto começa.

Eu não sei exatamente quando a minha começou, mas talvez o primeiro lampejo tenha sido uma frase que me mordeu durante uma palestra no colegial. Quando ouvi que “a vida é muito curta pra ser pequena”, senti um choque elétrico pelo corpo. Olhei em volta pra ver se mais alguém tinha passado pelo mesmo. Arregalei os olhos, fiquei em silêncio – mas não a mente vulcânica. Ah, não… essa começou a despertar.

Hoje, sei que sensação foi aquela. Acontece quando encontro mais uma peça desse quebra-cabeça que são as minhas próprias verdades. Vou colecionando as que encontro pelo caminho e que faz sentido adotar como minhas – são como uma trilha de migalhas de pão deixadas pelo caminho… ou como a teia da aranha. Pego uma referência aqui, costuro naquele livro que provocou sinapses ali, lembro da frase que uma mulher me disse outro dia e costuro também. Abro o caderno, escrevo escrevo escavo escavo, as garras começando a roçar as páginas. Farejo algo no ar. Escavo mais do outro lado da mente – conecto aquele episódio que me aconteceu em espiral, voltando em diferentes momentos da vida pra me soprar uma verdade sobre mim. Os olhos dilatam e, finalmente, cato no ar: então era isso?

encontrando o poder na dor

Uma verdade me visitou uma noite enquanto tirava cartas do meu oráculo. “Há um poder escondido debaixo de toda a sua dor”. É na cura que descobrimos a habilidade, o dom ou o presente ao mundo que podemos manifestar se quisermos.

A dor que eu sentia por causa de Shams estava mascarada. Eu achei que tinha a abandonado e isso tocou na minha própria ferida de abandono. Como eu poderia ter feito isso com um serzinho que me amou tanto?

Mas eu podia honrar meu sonho e ainda assim amá-la – uma coisa não anulava a outra, pelo contrário. Foi o que fiz quando entendi que sua vida seria muito mais feliz e segura ao lado de uma garotinha que pediu uma gata de aniversário. Por amor a ela e a meu sonho, deixei ir a ideia maluca de levar uma gata no mochilão.

menina abraçada com gato dourado
Um amor pra vida toda que cabe em dois dias e uma foto

O que me doía eram as noites em que ela não dormiria encaracolada no meu abraço, as manhãs que eu não acordaria com ela lambendo minha cara, todos os colos que eu não daria.

E no fundo de toda a dor, encontrei o Apego se escorando e cobrindo a luz de algumas verdades: Shams nunca foi minha. Nada nem ninguém me pertence. Achar que tenho posse sobre qualquer ser não é amor, é pequenez. E amor era o que ela já tinha plantado em mim – seria egoísmo meu não deixar ela ensinar e receber outro tanto em uma família de mulheres.

A verdade liberta. O amor também…

Marina Pedroso

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