Escutava com atenção enquanto andávamos as três de mãos dadas pelo souk de Aswan, extremo sul do país. Com exceção dos ouvidos no modo hiperfoco, o resto do meu corpo havia ligado o piloto automático. Abria caminho na multidão e deixava os olhos rolarem pelo mundo sem se aterem a nada. Barracas amontoadas e explodindo com cacarecos, manequins vestidas com burcas ou pela metade com saias de dança do ventre, luzes neon de todas as cores contracenando com pilhas de batatas e tomates vendidos por mulheres no meio da rua empoeirada… o bombardeio de informações só tiraria a atenção daquilo que mais me importava naquele momento: entender como é a vida de grande parte das mulheres no Egito da boca das próprias.
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Saí do Brasil com a teoria de que, assim como todos entendem o significado de um sorriso independente de nacionalidade, cultura, até língua, o ‘ser mulher’ também tem algo de universal e primordial. Nos encontramos nesse lugar antes de sermos brasileiras, chinesas, muçulmanas, gordas ou magras, de cidade ou vilarejo. Compartilhamos dores, potências e experiências, mesmo que em diferentes intensidades e camadas.
Assim, todas as mulheres com quem cruzei até agora nessa viagem surgiram como espelhos ou com algum pedaço do meu quebra-cabeça pra me entregar. Ao me contarem suas histórias, me contaram algo sobre mim também. Caminho costurando minha jornada às delas e assim vou tecendo minha própria.
Se eu tivesse que escolher um momento da viagem que simbolizasse isso, seria uma noite andando de mãos dadas com T* e L* em um souk de Aswan, extremo sul do Egito. A conversa começou depois que perguntei, afinal, como como era o uso do hijab no país.
Se entreolharam, hesitantes, tomando um tempo para analisar elas mesmas o contexto. Por fim, responderam: “é opcional, mas não é…”
Dependendo do nível de conservadorismo de cada família, a mulher que decide não escolher o que é esperado dela será punida socialmente, sendo pressionada, chantageada, rechaçada e excluída não só pelos seus entes, mas até por amigos. Lembrando que a família é um dos valores mais fundamentais na cultura egípcia e é em torno dela que o senso de comunidade e de pertencimento se forma.
Não estamos falando só do hijab (assunto, aliás, para outro post) – T* e L* usam por amor à sua religião e conexão com Allah. Mas ambas me levaram às lágrimas quando descreveram a briga colossal que compraram com suas famílias não só pra terem independência, mas pra fugirem de abusos físicos e psicológicos e pra continuarem trabalhando – algo que as famílias eram contra e, não por acaso, justamente o que deu a autonomia pra saírem de casa e terem a chance de exercer o que deveria ser básico: o direito de tomarem suas decisões e de escreverem sua própria história.
A própria viagem a Aswan foi um ato de rebeldia. Egípcias não podem viajar a menos que acompanhadas de um homem – marido, irmão, tio, pai, primo. Sozinhas, nem pensar – e veja bem, elas eram duas… mesmo assim, quando L* decidiu estender dois dias na semana de férias, foi o bastante para a mãe cair aos prantos, irmãs e tios ligarem questionando por que ela estava torturando e envergonhando seus pais e o pai fiscalizar o passaporte e documento de identidade na sua volta.
Naquela noite, T* finalizou: “minha família me ameaçou dizendo que se eu tomasse minhas decisões, iria errar. E é esse o ponto – eu quero ter a liberdade de errar! De aprender com a vida, descobrir o que gosto e não gosto, o que é certo pra mim e o que não é. Eu saí de casa e, ao contrário do que meus irmãos ‘previram’, não voltei mais.”
Às mulheres que leram até aqui: como isso bateu aí em vocês?
Porque em mim o que se desencadeou foi brutal. Ali foi plantada uma sementinha interna que viria a se tornar uma chave para uma das minhas maiores prisões. Ouvidos anestesiados, só escutava uma única pergunta on repeat na minha mente:
Quanta coragem uma mulher precisa pra escrever sua própria história?
Ao dividirem suas dores, T* e L* me deram uma peça turbulenta para o meu quebra-cabeças. O primeiro choque veio ao me dar conta das camadas culturais que nos separavam. Não preciso de autorização nem corro risco de ser violentada ou deserdada se decidir trabalhar, viajar ou morar sozinha. Decisões essas pelas quais elas lutavam para terem autonomia de tomar sob pena mínima de sofrerem pressões psicológicas e até relaçoes cortadas com suas famílias. Do mundo do qual venho, é até malvisto que eu seja desempregada ou more com meus pais depois de certa idade.
O segundo choque foi perceber que a peça ainda não se encaixava. Enquanto elas queriam mais que tudo a liberdade para escrever a própria história, eu tinha de sobra – e mesmo assim não o fazia, não escrevia, não compartilhava. Estava bloqueada. Por quê?
“Porque as suas prisões são outras…”, cantou a vozinha.
Minhas prisões são mentais. São meu passado dessa vida e de outras & o medo de ser julgada & medo de ser condenada & medo de errar & medo de acertar & medo de me expor & medo de assumir protagonismo & medo das caixas & o que esperam de mim como mulher & o sarcasmo usado pra me diminuir & o 9,5 que não foi 10 & a d1tadur4 no meu corpo e mente & sentar, falar, pensar que nem mocinha & minha autocobrança, inflexibilidade e descompaixão & quando fui ridicularizada por algo que disse ou fiz & quando não estava no padrão & as regras do tempo, do algoritmo e do gênero como conhecemos & o peso do ‘sexo frágil’ & o “tenho que” usado de forma obscena no começo de toda fala & os séculos de silenciamento & as bruxas na fogueira & seus livros e sua autoria queimados também & a natureza domesticada & meus ciclos também.
Click. A peça caiu em seu devido lugar.
Minha liberdade ainda não tinha sido conquistada como pensava. Minhas prisões só eram outras – prisões essas que T* e L* também carregavam… assim como muitas outras de nós.
E às minhas irmãs corajosas, T* e L*, todo meu amor. Obrigada por terem me dado a mão naquela noite.
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