Não sei qual é a da minha tara por montanhas. Posso ter sido uma cabrita montanhesa em outra vida, claro, mas acho que o fascínio tem algo a ver com o caos e o silêncio que dançam juntos na jornada até o topo. Mais do que chegar, acho que o que gosto mesmo é de entrar em contato com o que me leva até lá.
Talvez por isso, assim que soube que o tal do #Kilimanjaro ficava no norte da Tanzânia, praticamente na fronteira do país com o Quênia (ou seja, no meio do meu roteiro), decidi que colocaria na bucketlist da #voltaaomundo. Hoje, sei que foi um instinto. Porque subir o Kilimanjaro foi de longe a coisa mais difícil que já fiz. Houve um momento em que achei que a mente fosse fragmentar, o corpo desmanchar. Eu subestimei a montanha, mas também a mim mesma – encontrei uma força que não vinha dos músculos e foi o que me fez chegar no cume.
Fui sem saber que era o quarto dos sete maiores cumes e a mais alta montanha isolada (que não pertence a uma cadeia, como os Andes ou os Himalaias) do mundo. Os 5.898m que emergem da planície da savana e culminam no Uhuru Peak – que, em suaíli, língua local, significa “liberdade” – também dão ao Kilimanjaro o título de teto da África. Dentre aqueles que se atrevem a ir até lá correm os rumores de que muitos experienciam uma transcendência espiritual. Há também quem diga que leopardos podem ser avistados pela montanha.
Fui sem desconfiar que, pelo menos na rota Machame, eu seria a primeira mulher brasileira em 2020 (e, pelo andar da carruagem, talvez a única) a chegar lá. Fui sem imaginar que cairia em um golpe, que encontraria o tal do leopardo e que eu mesma faria o inimaginável. Mas fui certa de que seria uma jornada.
Mas por que a Machame Route?
Na verdade, cheguei na agência de Arusha querendo fazer a Coca Cola Route. Amo/sou doraventureira trilheira, mas pelo sedentarismo dos últimos meses achei que o mais sensato seria pegar a rota mais fácil. Porém, Ibrahim, o dono, explicou que a taxa de pessoas que conseguiam chegar ao pico era mais baixa do que outras rotas justamente porque era subestimada. Então indicou a Machame Route, que vai pelo sul da montanha e tem dificuldade maior, mas também dá melhor aclimatação já que os acampamentos ficam em uma altitude sempre menor do que o ponto mais alto da trilha de cada dia. Ele mostrou num papel o nome dos acampamentos que ficaríamos em cada um dos seis dias e pronto. Só mais tarde é que perceberíamos a cilada…
*
Fiquei até de madrugada arrumando o que eu deixaria no depósito do hostel . Pra deixar mais barato, eu e Glauco optamos por colocar nossas coisas em um mochilão só e não contratar um porter, que nada mais é do que um local que leva sua mochila por você.
Confesso que tinha medo dos meus joelhos fraquejarem – tive inflamação em ambos depois de desavisadamente andar quase 60km no circuito do Parque Nacional de Ibitipoca dois anos antes e sempre que exigia um pouco mais, a dor voltava… mas fazia tempo que não os sentia e já tinha feito outras trilhas depois do incidente, então bora!
O carro chegou para nos buscar às 10h, uma hora depois do combinado, e ainda rodamos a cidade atrás de alguns equipamentos que Glauco queria alugar, botas inclusas. Eu tinha a minha Yellow Boot da Timbaland e ele me dizia que eu deveria encontrar uma mais “apropriada”… mas ela era minha velha parceira de muitos mochilões & trilhas, não tinha por que gastar uma grana com isso. Também no caminho os meninos da agência pararam para comprar gás para cozinhar. Glauco achou estranho, mas eu, não.
DIA #1
Machame Route (1800m) >>> Machame Camp (2.835m)
Assinei o livro de registro e comecei a folhear. Vi escandinavos, alemães, franceses, americanos, até iranianos… mas cadê os outros brasileiros? Li o negócio inteiro e não achei um, o que significava uma coisa: pelo menos via Machame Route, eu era a primeira mulher brasileira a subir no Kilimanjaro no ano.
Conhecemos parte da equipe que iria conosco: Razzak e Uill, nossos guias, além de Francis, o cozinheiro. Além deles, soubemos que outros cinco porters se juntariam a nós encarregados de levar barracas, comida e utensílios de cozinha e, no fim, diante da careta de Razzak pro peso do nosso mochilão, resolvemos contratar um porter pra dividir o peso do mochilão com a gente.
Enfim, chegou o momento: START! Eram 15h quando começamos a subida e percorreríamos 11km até o Machame Camp para pernoitar.
Depois de um tempo o asfalto deu lugar à terra e adentramos a floresta densa que guarda a montanha. A luz que penetrava pelo topo das árvores e que encorpava a umidade do ar criava uma atmosfera surreal. Comecei a sentir a cabeça leve demais e, meia hora depois, uma leve dor do lado direito – sintomas do mal de altitude, que bate conforme o nível de oxigênio diminui.
A paisagem foi transicionando aos poucos da floresta para a Moorland, uma das cinco zonas naturais que compõem o ecossistema do Kilimanjaro – cada um tem sua própria vegetação de acordo com a altitude. Ali na faixa dos 2.000m, árvores e arbustos de folhas e galhos secos modelados pelo vento tomaram a cena de tal maneira que me lembrava de A Noite Estrelada de Van Gogh.
Chegamos ao Machame Camp (2.835m) entre 19h e 20h. Assinamos o livro de registro em uma cabana de madeira e logo fomos conhecer a Eureka, nossa barraca. A noite caiu e a temperatura também. Queria fazer xixi, mas achei que não tinha banheiro… só uma floresta atrás de mim. Então fui com Glauco a tiracolo, que queria fazer o número dois. Como estava um breu e eu tenho medo de aranhas, um ajudaria a segurar a luz pro outro além de vigiar se não tinha ninguém vindo. Na vez de Glauco, o traste soltou: “Segura minha mão? Não consigo cagar assim.”
Quinze minutos depois, ainda de mãos dadas comigo, terminou o serviço, se limpou e partimos. Eu mal tinha parado de rir quando a situação conseguiu piorar. Na porta da barraca, meu nariz torceu. “Que cheiro é esse?” Comecei a olhar as solas das minhas botas, mas nada. Quando virei o crocs do Glauco…
Pronto. O bonitinho fez a proeza de pisar na própria merda enquanto se limpava. Tomei a única decisão possível naquele momento: arremessei o crocs de forma olímpica pra longe da barraca e passei os próximos cinco minutos tentando puxar ar de tanto que ria.
Mas a graça acabou quando chegou a hora de dormir. No meio do frio tremendo, percebi que os sacos de dormir eram os mesmos do safari – ralinhos de tudo e com problema nos zíperes. É…. Houston, we’ve got a problem.
Dia #2
Machame Camp (2.835m) >>> Shira Cave Camp (3.750m)
Acordei com a claridade penetrando a lona fina da barraca, sentindo que não havia dormido nada. De fato, não havia: tinham montado num terreno inclinado, de forma que passei a noite toda escorregando até a parede e empurrando com os pés pra subir de novo (ad infinitum). Quando abri o zíper da entrada, a primeira coisa que vi a uns 500m foi uma construção grande e branca com duas portas equidistantes. Sim, um banheiro. Há!
Nota: Todo acampamento tinha uma casa de banheiros, toda vez era um imenso desafio tomar coragem pra ir – não só pelo frio e cansaço, mas porque era preciso puxar ar e segurar a respiração pra não desmaiar com o cheiro, fazer agachamento pra mirar o buraco no chão e depois sair correndo (porque precisa respirar em algum momento).
Éramos os únicos no acampamento ainda. Depois do café da manhã (fatias de fruta, pão de forma, porridge e chá) desmontamos tudo e partimos pra trilha de 5km, cuja previsão de duração era de 6 horas. Vixi… vem subida por aí. E veio, mas em forma de uma escada infinita de pedras. Costumo preferir esse tipo de trilha que mais a força das coxas do que a totalmente lisa-inclinada-queimadora-de-panturrilhas.
Passamos por cachoeiras e plantas alienígenas que só existem no Kilimanjaro. Cortamos a neblina que vinha abraçar a montanha e eventualmente chegamos ao Shira Cave Camp. Descansamos por uma hora até Razzak nos chamar para uma trilha de aclimatação: subir até um morro próximo e voltar. Eu já tinha tirado as botas, que se revelaram como um problemão – fora as bolhas nos calcanhares, sentia muita dor no segundo dedo do pé. O que me levou a fazer algo inédito: usar crocs. Esse dia chega para todos, amigos, e o meu foi nesse em que roubei o par (já limpo) do Glauco pra subir no pico.
De lá vimos a tarde começar a se despedir. Tudo estava tomado por uma neblina que veio se arrastando pelo vale como uma manta. A luz se difundia em uma grande nuvem dourada e, quando começou a chover, foi possível ver pequenas gotas de chuva em formas de orbe caírem de forma aleatória e sem pressa, quase em câmera lenta. Da natureza, captei ao longe o som das risadas e dos cantos ecoando do amontoado de minúsculas tendas coloridas. Me fez pensar na essência da humanidade como algo etéreo e efêmero mergulhado na imensidão do mundo. Ali, naquele momento, jogo de poder algum importava. Tudo apenas existia.
De volta ao acampamento, o espetáculo seguiu. De um lado, o sol se pôs ao lado do Mawenzi, outro pico vulcânico que usamos como referência de altitude ao longo da trilha. Os tons de amarelo e laranja gradualmente se misturavam com o azul que tomava o céu. Na face contrária, uma montanha nevada parecia ganhar luz própria em parceria com a lua cheia e contracenava com as barracas iluminadas por dentro e portando silhuetas humanas.
[…] mares e cavernas. Mudei mundos que encontrei no caminho e deixei o meu ser transformado também. Conquistei a maior montanha de um continente, dormi cercada de búfalos selvagens, encontrei anjos e demônios – muitos do lado de dentro. […]