Mudei vinte e um mundos

A ideia de mudar o mundo parecia algo distante. Como eu, sozinha, poderia? Quem sou eu pra fazer a diferença?

Bem.. no meio da volta ao mundo vivi uma experiência em uma favela no Quênia que me fez enxergar a pergunta de forma invertida. Na verdade, quem sou eu pra não fazer a diferença?

E eu descobri a resposta em um voluntariado que fiz em Kisumu, no Quênia.


Embarquei para Kisumu no que eu poderia chamar de “pior viagem de ônibus da minha vida”. Entrei com uma senhora de chapéu, ambas com os bilhetes em mãos, mas todas as poltronas estavam tomadas. Era a única muzungo (“branco” em suaíli) presente e sentia o peso dos olhos em mim, fora as risadas e os “corona” baixinhos que soltavam aqui e ali. Acabaram realocando um casal ao fundo para que pudéssemos sentar.

Me acomodei na janela e logo percebi que minha poltrona não reclinava como as outras. Ok. Ouvi a senhora blasfemando contra o cobrador – deixaram um casal idoso no meio da estrada, longe de onde deveriam descer, porque não tinham como pagar. “Deus é justo e vai devolver o karma”. Conversamos sobre fé e destino até silenciarmos. Me recostei para dormir, mas logo despertei ao sentir minha jaqueta totalmente molhada do lado esquerdo – um temporal caía do lado de fora e a janela aberta estava emperrada. Ok. Por sorte, tinha deixado minha toalha na mochila de ataque e cobri o corpo da melhor maneira que pude. Fechei os olhos. Ouvi uma voz cantando fantasmagoricamente ao meu lado. Quando vi, a senhora tinha se escondido inteira debaixo de um lenço e falava/cantava/rezava sozinha. Meu pai…

Tinha avisado Raphine que chegaria 5h30, mas o ônibus adiantou 1h – no meio da chuva, sem chip ou internet e sem saber como explicar ao boda-boda como chegar, esperei meia hora até criar coragem para pedir a uma mulher árabe que também tinha descido do ônibus que ligasse para ele. Me olhou desconfiada, mas logo se engajou. O motoqueiro me cobrou 200 shillings e, exausta, aceitei – mais tarde soube que o valor justo era 50.

Ele me deixou na frente de um casarão que parecia estar em obras ou abandonada. As janelas quebradas estavam cobertas com madeiras parafusadas, as paredes de cimento cru mostravam marcas de tempo. A pilha de pedras e areia tampava a entrada da garagem, deixando apenas uma porta. Do outro lado da rua, um matagal. Sozinha na escuridão, temi estar no lugar errado.

Mas logo a porta atrás de mim fez um barulho metálico e se abriu. Lá estava Raphine, com olhos bêbados de sono, jeans e uma sandalinha de couro. Entramos na garagem, que abrigava ainda mais pilhas de pedras de demolição, e subimos dois lances de escada até chegar na grade que guardava seu apartamento. Não conversei muito – só precisava de um lugar pra dormir. Ele me mostrou uma cama de solteiro surrada na área de serviço e foi lá mesmo que capotei.

*

No dia seguinte, o enchi de perguntas sobre o Hope Designers e como eu poderia ajudar. Tinha me candidatado a voluntariar pelo Workaway, mas não havia uma descrição muito extensa sobre o que exatamente precisavam. Raphine achou melhor me levar até lá para conhecer o espaço e as mulheres.

Ao cruzar a porta, os olhos demoraram a recuperar da claridade do lado de fora… mas o que vi cortou meu coração. Pelo menos quinze mulheres se apinhavam em uma sala de paredes e chão descascados e empoeirados. No canto, bacias e pratos empilhados pelo piso, onde uma das meninas lavava louça. Algumas máquinas de costura manuais espalhadas e um banco de madeira encostado na janela fechada do outro lado, onde duas mães davam de mamar enquanto vigiavam um montinho de cobertores no chão – ao chegar mais perto para cumprimentá-las é que percebi se tratar de uma criança dormindo ali. Me apresentei uma a uma, dando a mão e perguntando seus nomes.

Raphine explicou a situação. O projeto da @kar_geno ensina a mulheres soropositivas para HIV técnicas de costura e de administração para que possam criar e vender roupas, bolsas e acessórios e, depois, tentar abrir seu próprio negócio. Elas são vulneráveis e vem de um histórico de dependência financeira e abuso, mas são, sim, capazes e resilientes.
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Acontece que o projeto atendia vinte e uma mulheres com apenas cinco máquinas de costura. Elas revezavam entre si e, por isso, não atingiam seu potencial nem ganhavam escala de produção. Precisavam de ajuda.⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

Era a primeira semana de março e eu tinha dez dias antes de partir para o próximo destino – que ainda nem sabia qual era. Na meditação do dia seguinte, fogos de artifício estouraram na minha mente. Não tinha me tocado, mas estávamos na semana do Dia das Mulheres. Podíamos procurar outras organizações da região para fazer algum evento, trazer público e ajudá-las a ganharem visibilidade e venderem mais. Também podia lançar uma vakinha online pra tentar arrecadar alguma coisa para o projeto. “Mas em uma semana, Marina? Que raios você pensa que vai conseguir nesse tempo?”

Ignorei a vozinha mental. Saí com Raphine para pesquisar preços de máquinas de costura e de uma cama. Ele também me incluiu em um grupo de e-mails de organizações locais pra que eu pudesse buscar parceiros. Foi nesse networking que descobri o evento de Dia das Mulheres que a prefeitura de Kisumu estava organizando para o dia 12 de março – conseguimos entrar na última reunião de uma bateria que tinha acontecido nos últimos dois meses. Seria um dia de apresentações e ativações de várias empresas e ONG’s e nós poderíamos expor e vender os produtos feitos pelas meninas da Hope.

Nessa correria, lancei uma campanha de uma semana na Kickante e comecei a divulgar para amigos pelo whatsapp e pelo Instagram. A vozinha ainda me perseguia: “não sei nem porque você está tentando. Vai ser um flop total”, cantarolava. Dane-se. Se eu conseguisse qualquer doação já seria uma vitória.

E aí, o improvável aconteceu.

Na primeira série de stories, Léo, um colega de faculdade, me respondeu que o João, repórter, entraria em contato para me entrevistar e publicar a história no Yahoo. As primeiras doações entraram. Dois dias depois, acordei com uma notificação da Kickante: Giovana havia acabado de doar R$ 1.000. Eu não sabia o que fazer: berrar, chorar, pular… na dúvida, fiz tudo ao mesmo tempo. Paula também queria doar o valor de uma máquina e tinha uma amiga que gostaria de fazer o mesmo. Outra amiga jornalista, Marcela, me mandou mensagem dizendo que queria escrever uma matéria para o Catraca Livre. As doações multiplicaram.

Estava trabalhando de 8 a 12h por dia somente no projeto e sem nenhum dia de folga. Foi em uma sexta-feira que a campanha se encerrou. Mais de cem brasileiros doaram e compartilharam a campanha. Arrecadamos R$ 11.975, o suficiente para comprar 17 novas máquinas de costura e uma cama de casal dobrável onde os bebês poderiam dormir e as mães poderiam se acomodar melhor para dar de mamar.

“E pensar que, se eu tivesse ouvido a vozinha da Impostora me dizendo que não daria tempo e que eu fracassaria, nada disso teria acontecido”

Mulheres do projeto Hope Designers no Quênia
Antes, com cinco máquinas de costura…
Mulheres do projeto Hope Designers no Quênia
…e depois, com a sala lotada!

Claro, alguns imprevistos e fatos aconteceram:

Revirei o site da Kickante para entender como a transferência seria feita e, pesquisando no Google, descobri que pediam de duas a quatro semanas para realizar o processo. Eu não tinha esse tempo. A maneira que encontrei foi fechar os olhos, segurar na mão de deus e pagar tudo do meu cartão de crédito. Pra isso, teria que esperar até segunda-feira para que a fatura do mês fechasse e só então poderia adquirir as máquinas. E isso porque eu ainda tentava abstrair e ignorar o fato de que a bolsa de valores havia passado por três circuit breakers naquela semana – além de o dólar ter disparado, todo o dinheiro que eu juntei para a minha volta ao mundo estava distribuída em fundos de investimentos e metade tinha ido embora.

No domingo, dia 15 de março, surgiu o primeiro caso de Covid-19 no Quênia. A cada dia o presidente fazia um anúncio em rede nacional comunicando o status dos casos e das novas medidas restritivas implantadas. O mundo se afunilava à minha volta. As fronteiras fechariam no dia seguinte e eu não conseguiria sair do país a tempo pois tinha o compromisso da entrega do projeto. Era uma questão de dias até a rede de hospedagem (hosteis, Couchsurfing, Airbnb, voluntariados) se fechar também. O país não estava tratando a pandemia como uma “gripezinha”. Quem aceitaria uma estrangeira àquela altura do campeonato?

O universo me respondeu na forma de uma mensagem no Whatsapp. Shekhar, o indiano que conheci em Nairóbi, soube da minha situação e me ofereceu seu apartamento em Mombasa para que eu ficasse o quanto precisasse.

Foi nesse final de semana que também tive notícias de Rachel, mochileira e amiga que conheci em Arusha e com quem seguiria viagem por Etiópia e Sudão depois do Quênia. Ela estava em Uganda e decidiu correr para atravessar a fronteira antes que fechasse – cruzou no último dia, segunda-feira, e chegou a Kisumu de noite. Iria me encontrar no dia seguinte para a entrega das máquinas de costura.


Mal consegui dormir de ansiedade. Terça-feira finalmente havia chegado e ainda tinha muito o que fazer. Precisava comprar a outra metade das máquinas de costura e preparar a surpresa pras meninas do projeto – elas não faziam ideia do que encontrariam quando chegassem na casinha. Comprei um mural, imprimi o nome de todos os doadores e partimos para organizar a sala.

Mulheres do projeto Hope Designers no Quênia
As mulheres colocaram os nomes dos doadores no mural que agora vai ficar na sala
crianças do projeto Hope Designers no Quênia
As crianças fizeram festa 🙂
crowdfunding em projeto para mulheres soropositivas para HIV no Quênia
Assim, Brasil e Quênia escreveram uma história de amor no meio da pandemia

Não sei descrever a felicidade que senti com a emoção delas. Gritaram, riram, cantaram. Raphine ficou em êxtase – agora podia tentar abrir uma segunda turma e atender o dobro de mulheres e famílias. E pensar que, se eu tivesse ouvido a vozinha da Impostora me dizendo que não daria tempo e que eu fracassaria, se tivesse acatado ao paradigma de que pra mudar o mundo é preciso fazer algo gigantesco, ter uma posição de poder… nada disso teria acontecido. E eu não estaria aqui escrevendo essa história de amor que aconteceu entre Brasil e Quênia no meio de uma pandemia global.

Ali me dei conta do quanto posso fazer e entendi que pra mudar não só um mundo, mas 21 deles, basta uma tomada de decisão.

E se podemos fazer tanto pelos outros com um gesto pequeno, o que não podemos fazer por nós mesmos? Deixo essa pergunta no ar 🙂

Marina Pedroso

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