Eram 4 da manhã. Depois de tanto revirar na cama, resolvi levantar de uma vez – nunca imaginei a agonia de ter hora pra acordar, mas não ter um despertador para fazer o serviço por mim. No dia anterior tinha caído no golpe dos falsos policiais e tinham me levado tudo. Estava depressiva e paranoica por achar que iria perder a hora da única coisa que eu tinha garantida: o downhill da Estrada da Morte em La Paz, na Bolívia.
Às 5 em ponto entrei na van que me levaria até quase 4.000m de altitude na cidade de Coroico, vizinha de La Paz, onde eu começaria a descer os quase 65 km da Estrada da Morte até chegar aos 1.200m. O nome me assustava e me instigava – assim como os 3m de largura da rodovia de pedras e o precipício que tinha ao lado, caso caíssemos. E mesmo tendo um baita trauma de andar de bike em estrada de terra, guiar uma ladeira abaixo foi o que me fez acordar pra vida depois do golpe que sofri na Bolívia.
Chegamos num acostamentão da estrada junto com outras vans, vestimos roupas e equipamentos e começamos a descida. Estávamos em quatro – Rob, o francês, Nikolaj, o dinamarquês, e Miguel, o guia da agência El Solario. Logo no começo ficou claro pra mim que eu era a café com leite – os três iam na frente e, eu, cagando de medo daquela descida íngreme, ia freando e entoando um mantra mental que alternava entre “calma, caraio”, “vou morrer” e “você consegue, você consegue, você consegue”.
Dando um spoiler: caí três vezes a trilha inteira – duas porque freei muito forte e a bike capotou pela roda fronteira travada e uma porque cruzei com uma pedra solta no caminho. Foi nessa vez também que eu caí e rolei pra bem perto do precipício, mas na hora eu nem me liguei nisso – me alucinava o fato de encarar o medo que eu tinha de cair e perceber que, mesmo quando acontecia o pior tombo, eu continuava inteira. No dia seguinte, eu tinha hematomas que iam dos joelhos até a bunda. Também me sentia viva pacaraio.
Nos primeiros km, a névoa cobria tudo, revelando só alguns metros à frente. Pensei em como eu não tinha mais nada graças a uma gangue boliviana. Era meu décimo dia da viagem por Chile, Bolívia e Peru, meu primeiro mochilão sozinha, e tinham levado celular, câmera e metade do meu dinheiro. A lembrança dolorida mal passou pela minha mente e logo foi jogada pra roda traseira da bike junto com a ventania.
Aí, veio o estalo. De fato, tirando a bicicleta e a roupa de lona no corpo, eu não tinha mais nada – câmera, celular, dinheiro, tudo tinha sido levado. Mas por isso mesmo, também estava mais leve. Foi como se eu tivesse uma chave em mãos: logo depois da primeira curva na estrada, a névoa abriu como uma cortina. O que eu vi me levou da trilha até o céu.
Um vale cercado por uma cadeia de montanhas gigantescas, majestosas e imponentes, perfeitas como uma pintura. Vi águias voando quase na mesma altitude em que eu estava, por entre alguns raios de sol que davam forma à bruma fria da manhã. Eu me senti tão pequena. Meus problemas eram menores ainda. Eu estava diante de Deus e ele me dizia que a vida era muito mais do que qualquer tristeza.
Mas se eu fui pras nuvens, logo voltei pro chão – literalmente, kkk. Terminada a parte da estrada de asfalto, começava a de pedras. Grandes, pequenas, soltas e malandras. Como é íngreme pakas, você pega velocidade num piscar de olhos. Na minha primeira engrenada, levei um susto e freei com tudo – daí beijei o chão depois de uma cambalhota digna de competir nas Olimpíadas.
Muitas quedas, atravessadas por cachoeiras, paradas em lugares surreais no meio das montanhas depois, o mantra valeu: consegui. Claro que fui a última a chegar na vila ao pé das montanhas que marca o ponto final da descida. Rob e Niko estavam me esperando com uma breja gelada – nunca mereci tanto.
Terminamos o dia de volta na agência, recebendo nossas camisetas da vitória e um CD com as fotos. Morta de fome, parei em um fast food de pollo com Nikolaj pra comer uma coxa com batatas e conversar sobre a vida – afinal, eu não tinha morrido.
[…] by Marina Pedroso Share this article FacebookPinterestEmail Previous article Sobrevivi à Estrada da Morte em La Paz Next article A volta do primeiro mochilão América do […]