Caí no golpe dos falsos policiais na Bolívia

Estava em pé no meio da rua, no mesmo lugar onde me jogaram pra fora do táxi em movimento. Por sorte, nenhum carro passava, porque sem dúvida eu teria sido atropelada tamanha a confusão mental que eu sentia. Meus ouvidos zumbiam, meus olhos estavam arregalados, eu não sentia mais meu sangue no corpo nem conseguia respirar. Eu tinha sido dominada pelo terror e não raciocinava mais: me ajoelhei ali mesmo e virei minha mochila do avesso, jogando meu cachecol e uma maçã no asfalto – tudo que tinha me restado. Meus dedos rodopiavam e socavam freneticamente o forro de lona, como que não querendo acreditar que minha câmera, meu celular, meu passaporte e todo o dinheiro tinham sido levados. A cereja do bolo? Eu estava completamente sozinha em uma cidade que não conhecia no meio da Bolívia. 

Eu viria a repetir essa mesma sequência de movimentos entre dedos e mochila inúmeras vezes até à noite, tentando negar e desfazer uma realidade que não ia mudar: A mochila estava vazia, assim como eu. 

Prelúdio

Estava no meio do meu primeiro mochilão pela América do Sul, em 2016, e eram 5h30 da manhã quando cheguei no terminal de La Paz. Saí tropeçando zumbizeira do ônibus noturno que tinha pegado em Uyuni, depois de três dias atravessando o Deserto do Atacama em um jipe. Por sorte, ouvi duas pessoas perguntando a um taxista quanto sairia a corrida até o Loki, hostel que eu ficaria nos próximos dias, e consegui uma carona. Por azar, descobri no balcão que o check-in só seria liberado às 14h. Tomei uma chuveirada no térreo e, porque não tinha onde guardar, deixei meu mochilão no saguão e levei tudo que tinha de valor comigo rua afora. Eram 8h30 da manhã e eu queria conhecer a cidade. 


Quem me conhece sabe que não tenho paciência para visitar igrejas turisticamente. Nem por curiosidade. Mas quando passei na frente da Iglesia San Francisco, a principal da capital boliviana, tive um ímpeto e entrei. Pela primeira vez na vida meus olhos encheram de água quando cruzei com os anjos e com Maria. Deliberadamente, sentei em frente ao altar e pedi proteção. Na hora e no contexto em que me encontrava, o impulso não me pareceu tão estranho. Afinal, o que mais uma garota fazendo um mochilão sozinha poderia pedir? Mas até hoje fico imaginando se aquilo tudo não foi um eco da minha intuição gritando de dentro. Horas mais tarde, eu precisei mesmo de toda a proteção que deus@céu tinham pra dar.

Quando saí, peguei a primeira rua à direita da igreja e subi a colina de Cumbre, bairro de La Paz. Troquei todos os meus pesos chilenos por bolivianos, comprei minha ida pra Estrada de la Muerte do dia seguinte em uma agência e cruzei a rua até o Mercado de Las Brujas. 

Localizado entre as avenidas Santa Cruz e Sagarnaga, nas calles estreitas de Linares e Illampu, o lugar leva esse nome por causa dos artigos místicos expostos nas calçadas, chamando pra dentro das lojas: De cartas de tarô, ervas secas e poções de amor e vingança a estatuetas macabras de deuses incas, sapos ressecados e fetos de lhama contorcidos e pendurados na rua, impossível não sentir uma inquietação enquanto caminhava por ali, como se eu fosse mais um ingrediente dentre tantos outros naquele caldeirão. 

Eu deveria ter prestado atenção. Tinha mesmo alguma coisa no ar – além do olhar torto que as cholitas (invariavelmente prostradas com cachimbos e jornais às entradas das lojas como se fossem velhas guardiãs) lançavam pra mim enquanto tentava fotografar as coisas que elas vendiam. Uma delas me fitou de um jeito tão intenso e bravo que, mesmo que tenha sido por cinco segundos, na hora resolvi guardar a câmera na mochila. Mais um pouco, podia jurar que teriam mandado uma maldição…

O golpe

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Coincidência ou não: encontrei esse chocolate na Bolívia. Comprei porque achei engraçado – ainda por cima, era horrível.

Assim que puxava o zíper, uma moça pequena, com traços inconfundíveis da América Latina – cabelos negros, pele caramelada, olhos amendoados – me abordou com um mapa nas mãos. Perguntou se eu sabia o caminho para não sei onde e pronto, foi o bastante para que começássemos a conversar. Ela me contou que era de Lima e ia encontrar com a irmã em alguns dias, mas até lá estava viajando sozinha. “Mira, yo también! Que te parece irmos al teleférico juntas?”

Muitos me julgariam por ser aberta com estranhos desse jeito, mas fato é que quando estamos viajando solo, é assim que as coisas acontecem. Você se abre pro mundo, faz amizade pelos motivos mais banais, as pessoas te cumprimentam e trocam piadas a troco de nada. As barreiras culturais, sociais e de etiqueta caem por terra. 

Então, descemos a colina juntas. Sugeri que pegássemos um táxi. Quando ela já estava chamando um, disse para ela que precisávamos atravessar a rua ainda para pegar o sentido certo. Já do outro lado, negociei com um carro comum, que tinha a palavra TAXI pintado em verde neon no para-brisa. Ele topou a pechincha e entramos.

O carro andou só alguns metros e, de repente, com ele em movimento, dois homens abriram as portas e entraram correndo – um no passageiro, outro a meu lado esquerdo, no banco de trás, me deixando no meio e a peruana na janela. O da frente vestia um terno verde musgo, camisa laranja, gravata estampada, óculos escuros quadrados e dentes de ouro. O segundo seguia o mesmo estilo, mas tinha o terno cinza. 

Mandaram o motorista continuar andando e se apresentaram como policiais à paisana em operação contra taxistas clandestinos. Pediram os documentos do carro e sua habilitação – logo depois, passaram a atenção para nós duas. “Também vamos precisar revistar vocês. São turistas, não são? Estamos atrás de documentos, cartões e dinheiro falsos. Drogas também. A Bolívia tem tido muitos problemas com isso, então vamos ter que checar suas mochilas.”

Eu sentia que tinha alguma coisa errada acontecendo. Mesmo petrificada, acho que ouviram meu coração a milhão. A peruana foi logo entregando a bolsa. “No te preocupes, chica, yo pasé por una batida así en Lima también, és normal por cuenta del trafico de drogas.” O policial revistou e depois colocou item por item de volta, fazendo questão de mostrar que ele estava devolvendo. “Sua vez.” 

De um lado, a peruana segurava minha mão com força. De outro, o segundo policial, ao meu lado, apalpava minha jaqueta, pegando minha doleira e celular, e cantarolava frases como “você não devia estar andando sozinha, sabia que pode ser sequestrada a qualquer momento…?” Entreguei a mochila. 

Fiz uma força descomunal pra não desgrudar o olho do policial que desmontava a câmera na minha frente (“é, parece não haver drogas aqui”) e revirava minha mochila enquanto o outro seguia dizendo no meu ouvido como eu não deveria ir até o teleférico pois seria sequestrada com certeza. Aí, com os nossos passaportes em mãos, o terno verde ligou pra alguém do seu celular velho à la Nokia para conferir os números e carimbos. Sem desligar, passou a checar e recitar os números do cartão de crédito da peruana, que deu a senha assim que ele pediu. Quando se virou pra mim, não deu outra: comecei a gritar e chorar. 

– Vocês são loucos? Yo sé que não posso dar los números de la tarjeta, isso não existe! Eu não vou dar, vocês não podem me obrigar!1!!

De novo vieram o anjo e o diabo nos meus ombros.

– Calma, chica, ellos no tienen como sacar nada de su cuenta, és solo para verificación.

– Shhh – fez o terno cinza com o indicador na boca, sinalizando pra fazer silêncio – si fuiste usted no provocaria él porque puede tornarse muy agressivo… no tienes medo? Sin miedo, puedes ser sequestrada…

De novo a palavra sequestro. A palavra ricocheteava minha mente na mesma velocidade em que tive uma sacada – se eu falasse os quatro primeiros números, eles não poderiam fazer nada. Mas no instante em que falei…

– HIJA DE LA PUTA, ESTÁS MENTINDO PARA MÍ? ESTUVE EN SAO PAULO, SÉ QUE LA TARJETA TIENE SEIS NUMEROS!

Mano.do.céu. 

Eu já nem raciocinava mais. Tudo aconteceu em segundos, desde o momento em que entrei no maldito táxi, que continuava andando pelas ruas como se nada estivesse acontecendo. Presa no meio do banco, sendo bombardeada a cada minuto pela palavra sequestro, meu lado lógico foi cedendo lugar pro instinto de fazer qualquer coisa pra sair de perigo. O grito foi o ápice. Passei os seis números.

Foi o gatilho pro terno verde dizer que não tinha nada de errado com o passaporte da brasileira, mas que o da peruana tinha um carimbo faltando – e por isso ela iria com eles pra delegacia. O carro desacelerou, o terno cinza jogou minha mochila pra fora e depois me empurrou junto. Sem pensar, agarrei no batente da porta, tentando fazer com que parassem – queria ver se não tinha deixado nada meu lá dentro. É claro que não consegui segurar um carro em velocidade e deram no pé. 

Me vi no meio da rua. Meu rosto formigava, não sentia meu sangue na cabeça nem nas mãos. Eu tremia descontroladamente. O primeiro pensamento que me atingiu: “pronto, sequestraram a peruana.” O segundo pensamento que me atingiu: “minha câmera…”

De tudo que me levaram, foi o que mais doeu. Eu tinha desenvolvido uma paixão pela fotografia depois de fazer um curso de três meses em SP e, ali no espaço de um segundo, só consegui fixar na perda da primeira foto da Via Láctea que tinha conseguido fazer na vida, em uma noite gelada no Atacama, e que tinha significado o mundo pra mim – dentre tantas outras fotos que tinham feito meus dedos pulsarem junto com a Nikon naquele primeiro mochilão sozinha. 

Mais golpes

Não sei com que força me arrastei até a calçada. Minha visão clareava e escurecia, não conseguia engolir porque simplesmente não tinha mais um resquício de saliva na boca. Comecei a gritar por socorro e um casal chegou junto – o cara era advogado em La Paz e me levou direto pra delegacia mais próxima. Assim que cheguei, a primeira coisa que fizeram foi me levar para uma salinha. Na parede havia um quadro e, nesse quadro, quatro retratos: na hora reconheci o motorista, os dois policiais e a peruana. A mesma que eu tinha tentado proteger o tempo inteiro em um abraço forte, a mesma que eu tinha confiado, que tinha me prometido que tudo ia ficar bem. 

Me levaram para uma outra delegacia e, sentada em uma das poltronas de couro rasgadas, num misto de lágrimas e suor que os ventiladores de teto rangendo não conseguiam secar, passei três horas fazendo reconhecimento facial e dando depoimento. Eu implorava para que me deixassem ligar para meus pais. A palavra sequestro tinha fincado as unhas na minha mente e eu só conseguia pensar em como os bandidos poderiam usar meu celular pra arrancar dinheiro da minha família. Fora a sensação de vulnerabilidade – eu precisava desesperadamente falar com alguém que eu conhecia e confiava. Me sentia traída, desamparada, completamente sozinha e exposta. 

Também implorava pra acessar algum computador para bloquear meu cartão, mas negaram tudo. Não tive direito a uma ligação sequer. Quando o delegado terminou meu depoimento, apertou enter e pediu, com um sorriso no rosto, para que eu repetisse tudo de novo. Comecei a gritar com ele. Estavam me enrolando. Não teriam me dado o boletim de ocorrência, aliás, se eu não tivesse dado meia volta na porta por perceber que não tinha papel ou prova alguma do que tinha acontecido comigo. 

Na rua, os únicos 5 pesos que restaram no bolso da minha calça não foram suficientes para pagar a corrida até o hostel – os taxistas estavam cobrando 6 e, mesmo comigo implorando aos soluços, aquelas cabeças ranzinzas continuaram balançando em negativa. Andei cerca de 8 km até entrar no saguão entre soluços intermináveis, bolhas nos pés e frases confusas faladas em português, inglês e espanhol tudo ao mesmo tempo agora. O recepcionista não disse nada, só correu até mim e me abraçou forte. Disse que eu estava segura ali.

Saldos

Quando finalmente consegui acessar um computador, descobri que tinham sacado R$2.000 no meu cartão. Não era à toa que tinham me enrolado tanto na delegacia – foi nesse tempo ganho que fizeram as transações. Boatos rolam de que a polícia boliviana é totalmente corrupta, agindo em conjunto com essas gangues que lesam turistas. Eu acredito.


Foi o dia que mais chorei na minha vida. Das 12h até às 20h, quando simplesmente não tinha mais energia nem pra soluçar. Não sei como, mas na trigésima vez em que virei minha mochila do avesso (a prática virou um toc naquele dia), meu passaporte caiu no colchão, a estampa dourada reluzindo na minha cara incrédula. Por mais nonsense que possa parecer, senti como se tivesse recuperado uma parte minha de volta – e agora eu também poderia entrar em Machu Picchu dali a alguns dias… porque até isso eu achei que tinham tirado de mim.

Curiosamente, foi a caminho da cidade inca que tive uma epifania. Os ladrões não tinham me tirado nada. Não tinham levado Saturno, nem as paisagens surreais do Atacama, a crise de riso que tive quando um lago congelado rachou sob meus pés e afundei na lama em uma das paradas da travessia pra Uyuni. Ou a adrenalina e sensação de liberdade que me fizeram sentir viva no dia seguinte ao roubo, quando fiz o downhill na Estrada da Morte. Se eu tive sorte ou proteção, não sei. Mas a vida e meu mochilão seguiram.

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Da máxima que algum filósofo grego soltou na Antiguidade e que continua valendo: “shit happens, mafriend”

Dicas de segurança

  • Desconfie de quem vem fazer amizade fácil quando você está andando sozinha na rua. Uma regra que parece óbvia, mas quem viaja sozinha sabe que a facilidade com que você se conecta a outras pessoas é muito maior – é outra mentalidade. E por isso mesma, saiba que você é um alvo fácil. Uma coisa é ser amigável, outra coisa é ser ingênua.
  • Fique atenta quando estiver saindo de uma casa de câmbio ou banco – mesmo que não tenha entrado no lugar, simplesmente o fato de estar na porta pode levar alguém a pensar que você sacou dinheiro. Desconfie de quem se aproximar de você depois disso.
  • Sobre táxis: MUITOS países tem taxistas clandestinos e ilegais. Depois dessa experiência eu nunca mais entrei em um, kkk. Quando estou muito longe para usar as pernas, uso sempre apps como Uber ou, se me sinto segura o suficiente, transporte público (metrô, ônibus).
  • Ande sempre com o cartão de visitas do hostel – qualquer problema, peça ajuda para algum local ligar lá.
  • Se algum delito rolar e você for na delegacia local, peça SEMPRE pela sua via do boletim de ocorrência. Se eu não tivesse pedido ao delegado boliviano, ele não teria me dado. Os B.O’s são importantes para acionar seguros de viagem, de equipamentos, de cartão de crédito e para tirar segundas vias de documentos.
Marina Pedroso

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