Algo aconteceu naquelas ruas tão estreitas de Shela. Foi como se estivesse percorrendo meu próprio labirinto – a cada esquina que dobrava, encontrava uma beleza: uma varanda explodindo em flores, uma parede feita de corais, portas com arabescos, meus enigmas… E essas ruínas. Me encantei com os destroços que eu via – refletia aqueles que eu sentia por dentro.
Pinkola Estés fala sobre a importância dos descansos, nome dado às pequenas cruzes vistos ao longo de estradas, em morros; sepulturas de quem partiu de repente. É importante reconhecer e honrar as pequenas e grandes mortes que já aconteceram em vida: um sonho que deixamos pelos cantos, uma ideia que não vingou, a amizade que minguou, a profissão que você não escolheu, o amor que virou outra coisa.
Nem todos sabem, mas meu primeiro mochilão sola pela América do Sul deu errado em algum momento. Fui sequestrada no dia em que cheguei em La Paz, na Bolívia; caí no golpe dos falsos policiais. De tudo que levaram, a câmera e as fotos foram o maior luto. Eu tinha acabado de fazer um curso de fotografia e, depois de anos dormindo em uma vida que me amortecia, estava descobrindo algo que amava fazer, que me colocava no estado de flow.
Se foi um pedaço de mim: a que andava fotografando em transe pelas ruas, construindo um jeito de olhar o mundo que era só seu. No lugar, veio o freio, o bloqueio, a certeza da injustiça e da punição inevitável caso eu persistisse. Depois daquilo, nunca mais consegui sair sozinha com a câmera nas mãos sem sentir um nó no estômago… só podia se tivesse mais alguém comigo e olhe lá.
Até sentir aquela inquietação no saguão do hotel. Queria desesperadamente sair pra desbravar as vielas, mas esperava os outros. No impulso, pisei pra fora da porta: “vou só até ali e volto…” Foi como se um ímã me puxasse. Foi algo que eu vi no caminho entre o barco e o hotel… Refiz os passos até chegar no meu destino – eu precisava conversar com as ruínas. Com todas as minhas demolições dos últimos meses, estruturas que pareciam ser de outra era. E mesmo dali nascia vida…
Silenciosamente, deixei ali um descanso. Um trauma, um bloqueio, um velho jeito de temer a vida que não cabia mais no meu futuro. Hoje, tenho o privilégio de celebrar a morte de padrões e medos mais do que a morte de algum sonho.
Que descanse em paz.
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