Imagine um destino cheio de paradoxos: uma ilha que funciona como país, com praias paradisíacas onde hijabs coexistem com biquínis e cujo azul da água hipnotiza. Seu ponto central é uma cidade no mínimo mística: é muito fácil se fascinar com as ruas de labirinto, as portas arabescas, os minaretes e mesquitas, o canto em árabe invadindo a cidade de manhã e de tarde pelos megafalantes pendurados nos postes. Uma decadência misteriosa permeando as pedras usadas nas construções que remetem à arquitetura árabe e indiana e uma cozinha pra lá de oriental, com direito a bananas alienígenas e tespeciarias e pimentas, herança colonial e carro-chefe da produção local.
Estou falando do arquipélago de Zanzibar, que me encantou assim que cheguei e que uma vez já fez parte do continente. Tudo bem, foi há um bom tempo atrás – durante a Era do Gelo, mais especificamente, antes do volume de água aumentar e a terra se separar.
A sua independência política, no entanto, aconteceu só em 1963, juntamente a Tanganika (continente) – um ano depois, ambas se unificaram e formaram a Tanzânia e a semi-autônoma Zanzibar, composta pela ilhas Unguja e Pemba. Até então, o arquipélago foi usado como posto comercial na Rota das Especiarias dos portugueses desde os primeiros anos de 1500, colonizado desde 1698 pelos árabes de Omã, que comandaram a era do Sultanato, e transformado em protetorado pelos britânicos no século XIX.
Zanzibar nos dias de hoje
A herança colonial é nítida na arquitetura, na gastronomia e nos costumes – basta se perder nas ruas labirínticas de Stone Town, cidade mais antiga, capital histórica de Zanzibar e patrimônio cultural da UNESCO para ver uma infinidade de portas e construções com influência persa/árabe e indiana (por conta dos colonos trazidos pelos britânicos). Uma cidade com ruínas à flor da pele e que não tem uma alma viva nas suas ruas à noite – a não ser os milhões de gatos que vivem por ali, considerados como seres místicos pelos árabes.
E porque os portugueses usaram a região como parada comercial na rota das especiarias por 200 anos antes dos árabes chegarem, a produção de especiarias como pimentas, canela, cravo e noz-moscada é, ao lado do turismo, um dos pilares atuais da economia de Zanzibar. Não à toa, um dos passeios que podem ser feitos é a Spice Tour, que leva o visitante até as terras de cultivo.
Dica taurina: não deixe de provar o Zanzibar Mix, caldo temperadíssimo com pedaços de batata, ovo cozido e bolinhos! Outra superdica é o Luckmann’s, restaurante com uma infinidade de opções da comida local (desde frutos do mar a folheados árabes e pratos indianos) a preços bem baratos, em que você compra as porções e vai montando sua refeição. E o melhor de tudo é que também tem uma bancada de sucos naturais com qualquer fruta que você imaginar – até milkshake de tâmara, especialidade de Zanzibar. Meu preferido foi maracujá com abacate.
Mais de 95% da população é muçulmana. Pra entender a predominãncia da religião, um fato curioso: Stone Town tem 56 mesquitas e só duas igrejas – uma anglicana e outra católica. As mulheres, nem preciso dizer passam pra lá e pra cá cobertas com o hijab – foi minha primeira vez frente a frente com esse tabu ambulante, aliás.
As crianças vão pra escola de manhã, pra madrassa (a escola religiosa muçulmana) pela tarde e fazem aulas extras (inglês, por exemplo) à noite. As meninas, porém, mal completam o ensino fundamental – quando se casam e engravidam, param de estudar pra cuidar da casa e da família… por isso mesmo é raro encontrar uma mulher que saiba falar inglês por aqui – com exceção das vendedoras de lojas de souvenir, são os homens que se comunicam mais com os turistas. Pra minha tristeza, foi um grande impeditivo pra me conectar com elas por aqui.
O que me surpreendeu mais foi descobrir que quem vive aqui é quase um prisioneiro da ilha: é extremamente difícil pros habitantes conseguirem um passaporte, quanto mais um visto pra viajar… e se demoram pra voltar, o próprio governo entra em contato com o país de destino via embaixada pra deportarem.
Fora isso e a dificuldade de me conectar às mulheres muçulmanas, senti uma série de pequenas prisões. A minha experiência com os locais não foi muito positiva. Tirando Duller, um host incrível do Couchsurfing que vive nos arredores de Stone Town e que ainda conduz uma escola de inglês pras crianças de sua comunidade, fiquei decepcionada com a forma como o turista é tratado: basicamente olham pra sua cara e enxergam uma nota de dólar no lugar.
Prepare-se pra ser assediadx, principalmente nas praias. Rolaram dois episódios que me marcaram mais: no primeiro, andando maravilhada pelas ruas de Stone Town, um menino se encantou pela câmera fotográfica pendurada no meu pescoço. Sentei ao seu lado e o ensinei um pouco a usar. Depois de 20 minutos usando a câmera para fotografar, tive de me despedir – e qual não foi minha surpresa quando ele fechou a cara, esticou a mãozinha e bradou “one dolá!!!”
O segundo episódio rolou alguns dias depois, na praia de Nungwi. Não estava em um dia legal e só queria descansar na areia – uma missão que eu viria a descobrir ser praticamente impossível, já que não há um segundo sequer em que você não seja abordada por locais vendendo passeios ou masai maras vendendo seus artesanatos. O pior é que a palavra “não” entra por um ouvido e sai pelo outro toda vez – mesmo dizendo que não tinha dinheiro comigo, eles insistiam e, no final, quando eu era obrigada a ser mais dura, ainda tinha que aturar alguns brigando comigo porque eu não queria lhes dar meu dinheiro. Oi?
Sobre as acomodações em Zanzibar
No geral, as acomodações são caras em Zanzibar. Bem difícil achar algo por menos que US$ 13 e não vi nenhum que aceitasse cartão – tudo cash. Como se não bastasse, mesmo que você reserve pelo Booking eles cobram um City Tax que varia dependendo do lugar: pode ir de 5 a 15 doletas extras. Se for reservar pelo app, vale checar se essa taxa já tá inclusa ou não.
Locomoção
Para chegar ao arquipelago há duas opções: pegar o ferry em Dar Es Salaam (US$ 35 o trecho) ou ir de avião – vale dar uma pesquisada antes pois muitas vezes rolam passagens com preços ótimos e até equivalentes ao ferry. No meu caso, que estava em Johannesburgo, a ida até Zanzibar saiu mais barata do que a passagem aérea até Dar Es Salaam.
Tenho viajado pela África só de dala-dala – uma van/caminhoneta que desafia as leis da física e supera o coração de mãe: sempre cabe mais três no mesmo m². E pelo preço a gente até encara os suvacos e joelhadas – pra se locomover em #Zanzibar, por exemplo, enquanto os taxistas cobram 40 a 60 doletas pra te levar de uma praia à outra, o transporte público te leva por 3000 shillings tanzanianos, o equivalente a R$ 6. Meu rolê, minha vida – e de todos os mochileiros de respeito.
Foi assim que cheguei em Nungwi, a praia azul no norte de Zanzibar, e te falar que dei sorte: mentalizei tanto que viajei só metade do caminho de 2h sentada numa nádega só. Das 20 pessoas enfiadas na caçamba com um teto de um metro e meio de altura foi justo o moço apertado do meu lado que desceu primeiro (o bichinho tava suando só de existir ali, tadinho). Não sei se foi a melhor ou a pior parte, mas logo depois que esse dala-dala quebrou descobri que tinha um ônibus maior com passagem de mesmo preço… Coisas de Zanzibar!
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